Cultura da Ucrânia tem dificuldade em atravessar fronteiras, mas existe e é grande
Nas últimas semanas, a sociedade civil ucraniana mobilizou-se para proteger o seu património histórico, mas não mais do que se empenhou nas últimas décadas para defender o direito a escrever e a criar na própria língua.
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O resultado é um universo literário cheio de autores premiados, mesmo se alguns continuam pouco traduzidos, e um amplo tecido musical catapultado para o plano internacional em todas as áreas, do jazz à eletrónica.
Música: Do sagrado ao musculado. E o músico que se alistou no Exército
Havendo disponibilidade, a incursão pela música que a Ucrânia dá ao Mundo pode começar sacra, nos séculos XVII a XIX, com as obras litúrgicas de Mykola Dyletsky, Dmytro Bortniansky, Maksym Berezovsky. Quando os ares seculares começaram a circular, destacaram-se autores como Semen Hulak-Artemovsky (na ópera) e Mykola Leontovych (no cruzamento com tradições populares). Nos altos e baixos do período soviético, merece atenção o vanguardista Valentin Sylvestrov, e uma incursão pelos autores contemporâneos pode começar por Yevhen Stankovych, reconhecido de palcos e ecrãs em múltiplos pontos do planeta.
Na música popular, o jazz é um idioma não especialmente frequentado. A magnífica harpista e compositora Alina Bzhezhinska nasceu em Lviv, reside em Londres e segue as boas tradições de Dorothy Ashby e Alice Coltrane. Natural de Kharkiv, Alexei Saranchin é um pianista com percurso internacional e incursões por outros géneros, o hip-hop à cabeça. No rock dominam os Okean Elzy, com produções épicas. Palindrom cruza guitarras elétricas ásperas com rap. Jamala, vencedora do Festival Eurovisão da Canção de 2016, tem uma série de ótimos momentos pop de corpo eletrónico; depois da invasão russa, a cantora e a família encontraram refúgio na Turquia.
A eletrónica de dança tem vasta popularidade na Ucrânia, com uma comunidade apreciável de produtores, DJ, clubes, público. E se, tal como nos outros idiomas sonoros aqui descritos, escasseiam nomes que estejam na ponta da língua de ouvintes do resto do planeta, o talento distribui-se generosamente. É o caso de Timur Dzhafarov, aliás John Object. A 26 de fevereiro, Object disponibilizou via Bandcamp o álbum "Life", compilação de 58 temas com material inédito produzido entre 2010 e 2019. Aos 26 anos, o presente e o futuro num abismo, o músico limpou os arquivos e juntou-se às tropas ucranianas em Kiev. O texto que acompanha "Life" tem toda a raiva e resiliência. No seu perfil lê-se: "Atualmente sob bombardeamento de russos. Morte a Putin".
Literatura: História trágica de Clarice Lispector repete-se cem anos depois
Clarice Lispector (1920-1977) não é o nome em que se pensa quando se procuram referências na literatura da Ucrânia. Os brasileiros consideravam "estrangeira" a autora de "Água viva", não por ter nascido na Europa mas pela forma como falava, com erres soando a sotaque francês, mas ela, refugiada como tantos outros, chegada ao Brasil aos dois meses de vida, sempre se disse brasileira. A sua obra nem sequer é atravessada pelos sucessivos dramas da Ucrânia, terra que, como fazia questão de dizer, nunca pisara. O que traz à memória Lispector é a repetição da história, cem anos depois.
Em 1920, quando nasceu - foi em Chechelnyk, a 360 quilómetros de Kiev -, a cidade de Kharkiv era um vanguardista eixo cultural, para onde confluíam escritores e intelectuais. A maioria, no entanto, seria perseguida e morta numa Guerra Civil que haveria de durar três anos. "Parece que a história está a repetir-se", afirmava, esta semana, ao "The Guardian", o poeta Ivan Senin, lamentando o bombardeamento russo que destruiu o Museu Literário.
Em 2022, a perseguição continua - à população e ao direito à identidade. Isso ajuda a explicar, em parte, a dificuldade em encontrar literatura ucraniana traduzida, por exemplo, para português. Um autor como Serhiy Zhadan, premiado poeta e romancista da nova geração (faz parte da vaga de autores que ganhou fôlego depois da independência da Ucrânia, em 1991, e de que fazem parte Maria Matios, Moysey Fishbein ou Oksana Zabuzko), até já está disponível em vários idiomas (inglês, francês, alemão), mas a pressão para que a língua ucraniana moderna - inaugurada em meados de 1700 pelo poeta Ivan Kotliarevski - não atravesse fronteiras é antiga. E contou, naturalmente, com o contributo de Josef Estaline.
Um autor como Taras Shevchenko (1814-1861), considerado o avô da literatura ucraniana (há um busto em sua homenagem em Lisboa) ou uma poeta como a premiadíssima Lina Kostenko, que tem 92 anos e um asteroide com o seu nome), mereciam ser amplamente conhecidos. Não são. É conhecido Nikolai Gógol. Se a Rússia não insistir em resgatar-lhe a naturalidade.
Património: 53 sítios já foram destruídos
Pelo menos 53 sítios culturais e monumentos da Ucrânia ficaram danificados em consequência da invasão militar russa no país, revelou a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Num levantamento não exaustivo, feito a partir de imagens de satélite e de testemunhos recolhidos, a UNESCO revela que ficaram destruídos ou danificados 29 locais religiosos, 16 edifícios históricos, quatro museus e quatro monumentos.
Entre os sítios atingidos estão o museu Ivankiv, a 80 quilómetros de Kiev [foto], que albergava 25 obras de Maria Prymachenco (1908-1997), uma das artistas mais relevantes do país (os ucranianos passaram semanas a esvaziar museus para salvar o património cultural, pelo que não é certo que o recheio esteja totalmente perdido), a igreja ortodoxa de Kamaianka, em Izium, e uma outra em Zadonsky, na região de Zaporíjia.
Segundo a agência France Presse, a UNESCO não tem ainda informações sobre o nível de destruição deixado nas cidades de Mariupol e Kherson, ambas ocupadas pelas forças russas.
A Rússia é signatária de uma convenção da Organização das Nações Unidas, assinada em 1954, sobre proteção de bens culturais em caso de conflito armado. Numa carta enviada em março ao ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, a diretora-geral da UNESCO, Audrey Azoulay, lembrou que "qualquer violação dessas normas implicará uma responsabilização internacional de seus autores".
Bolshoi pró-Rússia
Entretanto, o Teatro Bolshoi de Moscovo apresentou ontem o bailado "Spartacus", espetáculo que glorifica o gladiador que liderou uma revolta de escravos contra o império romano. As receitas revertem para os familiares dos soldados russos mortos na Ucrânia, num gesto de apoio ao que insistem em designar como uma "operação militar" comandada pelo presidente Vladimir Putin.