Nilofar Ayoubi tinha apenas quatro anos quando foi agredida por um estranho enquanto brincava nas ruas de Kunduz, no norte do Afeganistão. O ataque fez com que o pai a disfarçasse de rapaz durante os 10 anos seguintes. Tudo para que pudesse viver em liberdade.
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Nilofar Ayoubi nasceu em 1996 no Afeganistão durante a primeira era do domínio talibã (1996 a 2001). Aos quatro anos, chegou a casa a chorar, depois de um estranho lhe ter apalpado o peito em busca de sinais de "feminidade" e a ter esbofetado. O desconhecido ameaçou-a, dizendo que, se não usasse um véu, atacaria o seu pai na próxima vez.
O Afeganistão é uma das regiões mais conservadoras de Mundo, conhecido pela sua repressão sobre as mulheres. O ataque levou o pai de Nilofar a cortar-lhe o cabelo e a vesti-la de rapaz, identidade que tomaria durante os dez anos seguintes.
Vestida de rapaz, Nilofar começou uma vida radicalmente diferente da de outras raparigas de sua idade. “Comecei a receber o mesmo tratamento que os meus irmãos, podia ir com o meu pai ao mercado vestida de rapaz. Poderíamos caminhar quilómetros e quilómetros. Apanhávamos o autocarro para assistir a desporto e tinha amigos na vizinhança e ficava o tempo todo a brincar na rua", conta Nilofar, numa reportagem da BBC. Enquanto isso, as suas irmãs tinham de cobrir os cabelos e vestir-se de forma conservadora, algo que o pai detestava.
A vida de Nilofar incluía karaté, bicicletas e judo, enquanto as irmãs viviam a vida típica de uma mulher em Kunduz, ficando em casa e fora da vista dos homens.
Regresso à vida como mulher
Aos 13 anos, a vida de Nilofar voltou a mudar. Um dia, depois de uma aula de judo, foi à casa de banho e viu que estava a sangrar. A mãe da jovem começou a chorar, antecipando um futuro igual ao seu para as suas filhas. "Lembro-me que estava tão zangada por ser mulher que, à noite, chorava na cama", continua Nilofar.
Desde 2001 estava instalado um novo governo que lutava para manter o controlo, mas alguns direitos, como a educação, começaram a chegar às mulheres e Nilofar pôde ir à escola. Embora rebelde, o seu desempenho académico era excelente, o que lhe abriu as portas para que pudesse estudar no estrangeiro, na Índia.
Aos 19 anos, casou-se e, quando regressou ao Afeganistão com o marido, Nilofar criou um império de moda, mobiliário e design de interiores, empregando mulheres que não tinham o apoio financeiro de um homem. No seu auge, contava com 300 funcionários e diversas lojas na cidade.
Fuga para a Polónia
Apesar do sucesso financeiro que tinha no Afeganistão, a situação política era instável. E, em agosto de 2021, os talibãs conquistaram a capital, Cabul. Nilofar pediu à ama dos filhos que fizesse as malas para fugirem e tentou chegar à casa da mãe, em vão. Escondida num local próximo, deu várias entrevistas por telefone a jornalistas de todo o Mundo.
“Durante uma entrevista a um jornalista polaco, fui questionada se estava em alguma das listas de evacuação do país. Respondi que não. Ele pediu-se um tempo e, quando ligou novamente, disse-me que havia um avião da Polónia que, talvez, nos conseguiria tirar do país", afirma à BBC.
Assim foi. Três dias depois, chegaram à Polónia, um país que mal conheciam e onde iriam começar uma nova vida. Desde então, Nilofar tornou-se ativista pelos direitos humanos e já visitou países como a Bélgica, Alemanha e os EUA para participar em conferências sobre a situação das mulheres afegãs. "Não quero ser alguém que nasceu, viveu alguns anos e morreu sem contribuir com nada", garante.
Nílofar considera a sua experiência como homem "uma benção e uma maldição". "Foi uma maldição no sentido de que isso me deixou dividida. Sou uma peça partida. Não posso ser 100% mulher nem 100% homem. Por outro lado, foi uma bênção porque pude vivenciar os dois lados e isso tornou-me a mulher forte que sou hoje", remata.