Duas Irlandesas viajaram, este sábado, para a Inglaterra para interromperem a gravidez de uma delas, proibida de fazê-lo na Irlanda. E relataram a viagem no Twitter.
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É o mais recente protesto contra as leis antiaborto da República da Irlanda: duas mulheres arrancaram ontem de madrugada de casa para uma viagem de 48 horas, ida e volta, até Manchester, em Inglaterra, interromper a gravidez de uma delas.
A viagem, em si, é comum num país com legislação restritiva e governo avesso à mudança de paradigma. A originalidade destas #twowomentravel (duas mulheres viajam) é que estão, desde que embarcaram, a contar via Twitter o custoso périplo. E a identificar em cada "tweet" o primeiro-ministro irlandês que já disse que não comprometeria o seu partido Fine Gael na determinação de um referendo.
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A missão, reportada em vários media do Reino Unido, dá pela descrição "Duas mulheres, um aborto, 48 horas longe de casa". E arrancou com um agradecimento a Enda Kenny - o chefe de Governo que os irlandeses apelidam de Taoiseach - por forçarem-nas a fazer-se à estrada.
Prosseguem anunciando fazer a viagem "em solidariedade com todas as exiladas" por Kendy e antecessores. Foram mais de 3400 em 2015, calculando-se que, diariamente, dez irlandesas se façam ao caminho, para Inglaterra ou mais além. Depois de fotos do avião e do comboio inglês, publicam imagens do chão de uma sala de espera. "Enda Kenny, poderíamos estar em casa ao meio dia num outro mundo".
Na Irlanda, o aborto ilegal pode dar até 14 anos de prisão, fruto da oitava emenda da Constituição, que os ativistas pró-escolha querem ver riscada. As #twowomentravel mostraram também um televisor a reportar Jogos Olímpicos na sala de espera, onde deram com concidadãs irlandesas. Não se identificam, mas garantem ter mais de 18 anos. Às 16.30 horas, a intervenção estava terminada. Restava descansar para regressar hoje a casa.
Lei blindada em 1983
A proibição efetiva do aborto entrou na Constituição irlandesa em 1983, com a emenda ao art.º 40.º que reconheceu ao feto um direito à vida igual ao da grávida. Foi então uma vitória dos militantes pró-vida, que receavam que instâncias judiciais interpretassem a lei encontrando brechas que dessem à mulher o direito a decidir. Acontecera em 1935, com o Supremo irlandês a reconhecer à esposas o direito à privacidade no respeitante a assuntos maritais, para rejeitar uma lei proibindo a importação de contracetivos.
Levada a referendo no mesmo ano, a emenda passou por 67% dos votos, numa consulta com 46,7% de abstenção. Em 1992, três outros referendos fixaram no art.º 40.º o direito a viajar para fora do país e o direito a obter na Irlanda informação sobre os serviços legais existentes no estrangeiro.
Como as duas mulheres que viajam, muitas outras têm empreendido campanhas arrojadas. Em novembro, um movimento com o lema "Mulheres da Irlanda, a vossa vagina é problema deles" inundou o Twitter de Enda Kenny com relatos sobre ciclos menstruais.
A vitória de Amanda Mellet e o mea culpa do ministro
Amanda Mellet descobriu, às 21 semanas de gravidez, que o feto que carregava não era viável. Se chegasse a ver a luz do dia, seria por segundos. Viajou, como outras, para Inglaterra. Sem dinheiro para mais, teve de voltar logo após a interrupção da gravidez, deixando o feto para trás. Receberia as cinzas em casa semanas depois. Foi em 2011.
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Amanda queixou-se ao Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas e viu há dois meses ser emitida uma decisão inédita: os peritos determinaram que ela fora sujeita a "severo sofrimento emocional e mental" por lhe ser negada a interrupção da gravidez e aconselhamento médico.
Várias vozes se levantaram já invocando esta decisão da ONU como o motivo para suspender a oitava emenda. Entre elas, a do ministro da Saúde, que admitiu em junho ser favorável a um referendo para permitir o aborto em caso de malformação fetal.
Simon Harris pediu desculpa a Amanda e disse falar em nome de uma geração que não votava em 1983, quando a Constituição foi emendada, pedindo para que possa, agora, responder à pergunta de então, com base bum debate informado. Há um mês, o Governo dava um novo passo, nomeando uma comissão de cidadãos com um um caderno de encargos que inclui a discussão da oitava emenda.
Procedimento totalmente banido em 3% dos países
Em 2011, segundo a ONU (World Abortion Policies 2013), 97% dos países autorizam o aborto em caso de risco de vida da mulher, 67% previam o risco de doença física e 63% o de doença mental. Só 49% tinham legalizado o aborto em caso de violação ou incesto, enquanto 34% permitiam-no em circunstâncias económicas e sociais difíceis. Em apenas 29% era aceite o aborto por decisão da mulher. Na Europa, o aborto é totalmente proibido nos micro-estados do Vaticano e Malta e muito restrito nos de San Marino, Liechstentein e Andorra, tal como na Irlanda do Norte e na República da Irlanda, onde apenas é aceite em caso de risco iminente de vida da mulher. A prática é sujeita a muitas regras na Finlândia, Polónia, Islândia e Reino Unido. No resto do mundo, o aborto é totalmente proibido no Chile, República Dominicana, El Salvador e Nicarágua. No Canadá não está sujeito a qualquer restrição.