Durão Barroso, ex-presidente da Comissão Europeia, acredita que há condições políticas para relançar o acordo União Europeia-Mercosul.
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Os 10 anos que Durão Barroso passou ao leme dos destinos da política europeia fazem dele um dos líderes da língua portuguesa com maior influência no cenário internacional. Otimista em relação ao Brasil, acredita que o regresso de Lula pode dar origem a uma nova centralidade na geopolítica internacional. Esta entrevista, originalmente publicada na coluna de José Manuel Diogo na "Folha de S. Paulo", faz parte de uma série de conversas tidas no restaurante Cícero - o mesmo que Lula escolheu para "reiniciar" a diplomacia brasileira no seu terceiro mandato - com personalidades incontornáveis "de lá e de cá".
Como é que Lula pode influenciar a relação entre Portugal e o Brasil?
Eu vejo neste novo mandato do presidente Lula uma grande oportunidade para relançar as relações entre Portugal e o Brasil, mas também entre o Brasil e a Europa. Não quero comentar a política interna brasileira, mas parece-me que as relações entre os dois países, nos últimos anos, não foram as melhores. Não é que houvesse problemas. Não havia uma relação ativa.
Quando, há vinte anos, Lula tomou posse pela primeira vez, a visão que os dois países tinham um do outro era completamente diferente da que têm hoje.
O Mundo mudou. Acredito que hoje, no Brasil, se dá muito mais valor a Portugal do que dava antes. A relação era relação nostálgica, ligada ao passado, mas distante. No entanto, hoje em dia, os brasileiros são a maior nacionalidade (estrangeira) que há em Portugal.
Ele escolheu Portugal para a sua primeira "visita de Estado", mesmo ainda antes de ser empossado.
Havia uma verdadeira cumplicidade entre os dois países na altura da primeira presidência de Lula. Ela traduzia-se em verdadeiras agendas partilhadas pelas duas nações. Uma delas, era o acordo Mercosul. Falei muitas vezes com Lula sobre isso e sei que tanto o presidente, como o Brasil, queriam o acordo Europa-Mercosul.
O Mercosul é a maior pedra no sapato entre o Brasil e a Europa?
A verdade é que, na altura, a dificuldade maior vinha da Argentina. O presidente Lula queria o acordo, mas não queria deixar a Argentina isolada nem fazer muita pressão sobre o Governo argentino. Mas na Europa, também devido à produção agrícola, nem todos tinham o mesmo entusiasmo. Hoje a situação é diferente, até pela posição, já manifestada pelo presidente Lula, em relação à Amazónia. Parece-me que há condições políticas para relançar o acordo União Europeia-Mercosul.
Desta vez o acordo vai ser realidade?
Estive em Bruxelas, há algumas semanas, e posso confirmar que existe no seio da UE essa vontade. Motivações que me parecem ser, em primeiro lugar, geopolíticas.
O que é preciso fazer para dar início ao processo?
Sendo português vou tentar não exagerar o nosso papel. Mas, sendo objetivo, parece-me óbvio que Portugal é importante em todo este processo. Os afetos também contam, não é só a dimensão. Às vezes, os cínicos da Realpolitik defendem a ideia de que tudo o que rege a política são os interesses, mas não é verdade. Lembro a questão de Timor-Leste. Toda a gente nos dizia que a causa de Timor era uma causa perdida.
A verdade é que foi possível.
Não foi só Portugal. Foram, em primeiro lugar, os timorenses. Mas com o apoio dos países de língua oficial portuguesa. É óbvio que os interesses são fundamentais na política, mas há também afetos, paixões e afinidades que condicionam a forma de a fazer, e influenciam resultados que não têm explicação de outra forma.
Portugal pode ter uma posição liderante no processo de acordo do Mercosul com a União Europeia.
Eu conheço bem este Governo de Portugal, ele quer ter um papel importante nas relações da Europa com o exterior e deseja participar no estabelecimento de um acordo entre a Europa e o Mercosul. A Comissão Europeia, com quem estive há pouco tempo, também quer o mesmo. O presidente Lula, se não tiver mudado de opinião, também quer o acordo.
Isso criaria um novo sentido para essa ordem internacional. É como se se criassem novas pontes transcontinentais.
Exatamente! Até porque existe uma ameaça real. Eu tenho usado a expressão: a regionalização é o novo fenómeno da globalização. Temos uns EUA cada vez mais focados em si próprios. Apesar de a Europa ter um bom entendimento com Biden, as políticas protecionistas, que começaram com Trump, ainda hoje não desapareceram.
E há a China e a Rússia.
Na China o caso é mais grave, sendo que na Rússia a situação é trágica. A Europa pode cair na tentação de se fechar sobre si própria e a América Latina fazer o mesmo. Neste contexto fragmentário, seria ótimo que houvesse pelo menos um grande caso de sucesso. Isso seria a ligação Mercosul-União Europeia.
O que se pode fazer agora?
Na primeira cimeira [a acontecer no mês de abril em Lisboa] haverá equipas de negociação que têm de sublinhar as dificuldades que existem e começar a trabalhar para as ultrapassar. Vai ser uma negociação muito difícil, mas eu acredito que vai ser desta. Isso seria muito bom para o Brasil, para a Europa, para Portugal e para a ordem internacional.