Como se vota no bairro mais pobre e no bairro mais rico de São Paulo, separados por 15 quilómetros. O JN passou o dia entre brasileiros que parecem de planetas diferentes.
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É um sintoma do surrealismo e do ponto paradoxal em que estão as eleições aqui no Brasil: Fernanda Santos, 38 anos, solteira, unha francesa, bonita, está a fazer campanha por Jair Bolsonaro mas amanhã vai votar - "chiu!", diz ela a mirar em redor - em Lula da Silva. Aparentemente, a declaração dela é verdadeira, mas contém uma contradição lógica. Ela explica: "É, estava desempregada, veio aqui a campanha do Bolso e disse que pagava 50 reais ao dia [9,44 euros] se eu ficasse aqui no cruzamento a segurar esse cartaz. Eu aceitei. E depois, o voto é secreto mesmo, né?", diz ela a sorrir. O emprego dura 10 dias, vai somar 500 reais (94,40 euros), depois de amanhã torna a ficar desempregada.
Ali é um lugar especial. Jardim Ângela, bairro de periferia da grande baleia que é S. Paulo, bairro muito pobre: o índice de desenvolvimento humano (IDH) é 0,750, o 4.ºpior dos 96 distritos paulistas, foi taxado em 1996 pela ONU como o distrito mais violento do planeta. Mas ali, zona eleitoral n.º 372, em 2018 o então candidato do PT, Fernando Haddad, hoje vice de Lula no bilhete eleitoral, somou o seu valor mais alto de São Paulo: 57% de votos. Ali, Lula ganha de caras.
À volta do cruzamento de carros enrodilhados onde Fernanda segura o aborrecimento e o cartaz, as casas são colmeias cariadas e tortas, as ruas rotas, inclinadas, há demasiada juventude ociosa a esquinar, trânsito a roncar, lixos a voar, toda a gente anda de chinelo debaixo da nuvem de barulho infernal.
"É isso, Lula é amigo do pobre, aqui ganha fácil, aqui só tem pobre mesmo", diz António Ferreira a afagar um cacho de banana-prata sarapintada. Tem 68 anos, é mulato, seis filhos, 4.ª classe, poucos dentes, é bananeiro com banca erguida com quatro paus e uma tela na rua puída. "Estou aqui há 40 anos, comecei na feira com minha avó, tinha 9 anos, não parei mais". Acorda às 4 horas, abre a banca às 7 como o sol, fica até anoitecer. No dia a seguir, torna a repetir. "É, dá para sobreviver. Ando a sobreviver desde que nasci aqui". E depois António parte qualquer coração: "Você sabe que eu nunca vi o mar? Bom, já vi, mas só na televisão" - e o silêncio que ali cai de repente é ensurdecedor.
O choque é uma chapada
Sair dali, onde a pele escurece, o sorriso desce e ninguém caminha de celular na mão, e entrar na Av. Faria Lima, bairro Itaim Bibi, é uma chapada no olhar. Só 15 km separam os dois bairros antagónicos de São Paulo, ambos na zona Sul. Mas a distância política dos seus habitantes foi a maior registada na cidade nas presidenciais de 2018. No Itaim Bibi, zona eleitoral n.º 258, Bolsonaro escancarou um recorde paulista: 76% de votos válidos. Há um mês, na 1.ª volta eleitoral, o presidente capturou 515 das 645 cidades do estado. Lula só ganhou em 130 cidades.
Itaim Bibi tem o 6.º melhor IDH da capital paulista (0,953), tem avenidas largas, retidão, não há um papel no chão, a brancura desce como um véu sobre a população. À hora do almoço, as pessoas descem ordenadas dos escritórios com A/C, camisas engomadas, fitas ao pescoço com os cartões corporativos e caminham todas zen a bramir celulares de última geração. A avenida reluz de carros espadaúdos, prédios espelhados, shoppings de luxo, tudo é gourmet, tudo é largo e plano e limpo e cheira bem.
Bruno Miranda, 29 anos, camisa cintada, é angariador da My Broker. É a sua pausa de almoço, senta-se numa cadeira de lona num jardim e, atrás dele, ergue-se uma obra de arte colossal: uma baleia metálica de 20 metros que custou dois milhões de reais. Ele vota evidentemente Bolsonaro, a explicação é fatal: "Se Lula ganhar, quem tem dinheiro vai investir no estrangeiro; se ganhar Bolsonaro, o investimento fica aqui, é o que os clientes estão a dizer". Nasceu pobre, diz suavemente, "minha mãe era faxineira, viemos lá de Minas, fui criado precário" e agora cursa Direito e mantém três empregos, imobiliário, explicador, corretor. "O Brasil tem tanto potencial, mas tem que querer trabalhar. Somos o país do futuro, nossa inflação está melhor que a de Portugal".
Ao lado, Douglas, 42 anos, Larissa, 34, e Samanta, 35, todos bonitos, cuscam a conversa. "Somos Bolsonaro, é claro!". Porquê? "É a economia [estúpido]! E isso é tudo! Sem finanças controladas não tem crescimento, saúde, segurança, educação. Bolsonaro é isso tudo, o outro é só um ladrão".
E depois o trio levanta-se, vai almoçar no Dasian Modern Japanese Cuisine e os seus perfumes ficam ali a bailar no ar.