Habitantes de Ramallah sentem-se encorajados pelos reconhecimentos internacionais do Estado palestiniano, mas advertem que a sua luta só terminará com a desocupação israelita das suas terras e devolução da liberdade, mesmo que a paz chegue à Faixa de Gaza.
Corpo do artigo
Na ressaca da vaga diplomática que levou aos reconhecimentos históricos de dez países ocidentais, incluindo Portugal, a capital administrativa palestiniana foi devolvida à sua rotina, que, para Faisal, um desempregado de 63 anos, é "anormal, terrível e perigosa".
Num café tradicional na parte velha de Ramallah, conta como vive das suas poupanças depois de ter sido despedido e expulso de Jerusalém ocupada, imediatamente após os ataques dos islamitas do Hamas no sul de Israel, em 7 de outubro de 2023, uma data de viragem para o antigo trabalhador na construção civil e de outros 200 mil palestinianos que se estima terem ficado sem emprego.
A sua vida está agora confinada às ruas do centro da cidade e o seu comércio vibrante, apesar da crise que assola o território e dos salários da administração pública em atraso, e que por vezes são tomadas por rusgas das forças de segurança israelitas, por sua vez recebidas à pedrada.
Aos anúncios internacionais do Estado Palestiniano, que incluem Reino Unido, França e Canada, três potências do G7, e cinco membros da União Europeia, Israel reagiu com palavras de desvalorização, argumentando que nada vai mudar na situação de facto, e ameaças de retaliação, através da anexação de toda a Cisjordânia por parte da ala ultrarradical de direita do executivo.
"Vão fazer o quê? Vão roubar e ocupar as nossas terras? Cercar-nos com muros? Impedir-nos de trabalhar em Jerusalém?", questiona Faisal, num desabafo de ironia sobre uma situação que diz sentir na pele "há anos e anos".
Após os ataques do Hamas de 7 de outubro no sul de Israel, onde 1.200 pessoas foram massacradas e outras 251 feitas reféns, as forças israelitas lançaram uma operação em grande escala na Faixa de Gaza, que provocou dezenas de milhares de mortos, deixou o território destruído e sob o espetro da fome e genocídio, segundo a avaliação de peritos da ONU mas rejeitada por Telavive.
A intensificação da ofensiva na Faixa de Gaza e o recente ataque conduziu no Qatar contra uma delegação negocial do Hamas colocaram Israel sob grande pressão internacional, que culminou numa iniciativa francesa e saudita na chamada Declaração de Nova Iorque, já aprovada por larga maioria na ONU, e que visa fortalecer a solução de dois Estados para o conflito israelo-palestiniano, excluindo o Hamas, que deve sair da equação entregar a gestão da Faixa de Gaza às autoridades de Ramallah.
"Mesmo que terminem a guerra na Faixa de Gaza, não acabam com a ocupação na Cisjordânia", insiste Faisal e os israelitas, prossegue o palestiniano natural de Hebron, "vão continuar a ter a chave do portão".
Alheio às imagens da devastação em Gaza que se vão sucedendo no televisor sintonizado na cadeia catari al-Jazeera, mais a torrente de condenações a Israel na sessão de alto nível da Assembleia-geral da ONU, Sami conta no mesmo café que "os colonos israelitas estão sem controlo e a atacar toda a gente".
Há dias recorda que foi mandado parar por um grupo armado quando seguia na estrada com a mulher e os seus filhos e decidiu fugir: "Sabia que o risco era grande e que talvez me matassem, mas antes levar um tiro do que ser espancado à frente da minha família", relata, lamentando que na Cisjordânia ocupada "estas pessoas sejam impunes e os palestinianos tratados como criminosos".
Nos escaparates das lojas, entre prateleiras que vendem de tudo e os mosaicos de especiarias, os jornais locais continuam a exultar nas manchetes o momento da Palestina na arena internacional.
Mas outras notícias dão conta de passagens fechadas em período de Ano Novo Judaico, reforço sem precedentes da segurança na Cisjordânia, após ataques contra efetivos israelita e do atentado que provocou seis mortos este mês em Jerusalém, onde colonos extremistas insistem quase todos os dias em ações de provocação na Mesquita de al-Aqsa.
Segundo dados das Nações Unidas, cerca de mil pessoas morreram até 12 de setembro em resultado de ataques de militares ou colonos israelitas na Cisjordânia, incluindo Jerusalém ocupada, e acima de 30 mil foram deslocadas à força, número que abrange o encerramento dos campos de refugiados de Jenin, Tulkarem e Nur Shams.
Acumulam-se também os relatos de mais despejos em Jerusalém ocupada, afetando a população entrincheirada pelas barreiras que dividem as comunidades entre si e as afastam do centro urbano. Também de incidentes nas proximidades do muro com mais de 700 quilómetros de extensão ao longo da Cisjordânia, onde as autoridades israelitas preparam um novo colonato ilegal conhecido como E1. Na prática, ameaça dividir o território em dois e a própria viabilidade do Estado Palestiniano.
Aos 62 anos, Sami, que também é natural da região de Hebron descreve-se como um homem doente e sem perspetivas além de negócios de ocasião que vai fazendo nas imediações do pacato café de Ramallah, onde outros homens ainda mais velhos jogam dominó debaixo do conforto das ventoinhas.
"Acho que o mundo já percebeu que algo muito anómalo está a acontecer nestes lados", comenta, fazendo a sua cronologia dos acontecimentos pós-7 de outubro, em que "os israelitas começaram a receber um apoio muito poderoso".
No entanto, não bastaram seis meses até se converter em ajuda humanitária à Faixa de Gaza e também isso acabou", a que se seguiu a reação "aos massacres de mulheres e crianças, fome e bombardeamentos de hospitais".
Por fim, vieram os reconhecimentos do Estado da Palestina, que "não mudam nada", e concede que nisso os israelitas talvez tenham razão, "mas reforça a esperança de que um dia a ocupação venha a acabar" e para isso os países europeus têm de seguir o exemplo dos espanhóis e suspender a venda de armas a Telavive, a par de sanções económicas.
Além disso, as populações em toda a parte são desafiadas a continuarem a fazer pressão sobre os seus governos, incluindo nos Estados Unidos, "que usam o seu poder de veto" no Conselho de Segurança da ONU e "só contribuem para as matanças em Gaza e ocupações na Cisjordânia". Mas que "talvez venham a perceber que podiam terminar a guerra num minuto em vez de acabarem sozinhos contra o mundo inteiro".
Faisal recomenda ainda prudência a quem pensa que o Hamas está acabado, "porque os seus líderes foram mortos mas os combatentes continuam lá" e muitos palestinianos continuam a achar que "eles lutam pela sua liberdade, apesar de o mundo os ver como terroristas" desde 7 de outubro de 2023.
"Por isso, o mundo não pode dizer se quer ou não o Hamas. Nós, o povo palestiniano, é que decidimos se queremos o Hamas", declara, acrescentando com vigor: "A guerra só acaba com negociação e a luta só termina quando tivermos a nossa liberdade e as nossas terras de volta. Ponto!"
Na terça-feira, uma parada de políticos da Fatah, o movimento que controla a Autoridade Palestiniana e rival do Hamas, apresentou-se numa concentração em Ramallah de agradecimento aos países que reconheceram a Palestina, com centro na praça de al-Manara, onde esculturas de quatro leões em pedra evocam as famílias originais da cidade e estão virados de costas uns para os outros.
A mobilização juntou algumas centenas de pessoas, sobretudo jovens que gritaram palavras de ordens nacionalistas e agitaram bandeiras palestinianas e de países que acabam de reconhecer o seu Estado, mas foi recebida com indiferença pelos habitantes da cidade, que prosseguiram as suas atividades normalmente.
Entre eles está um homem que prefere proteger o seu anonimato e da mulher e filha que deixou na Faixa de Gaza há cerca de dois anos para trabalhar em Jerusalém, de onde foi expulso logo após os ataques do Hamas. Acabou retido em Ramallah e sem modo de regressar à sua casa de origem em Khan Yunis, no sul do enclave, mas que já foi destruída.
"Construí com as minhas mãos cada shekel [moeda israelita] que investi naquela casa", descreve o palestiniano que se empregou num parque de estacionamento, enquanto alimenta a esperança de rever a filha de quatro anos, que viu pela última vez há dois e agora vive com a mãe numa tenda em Deir al-Balah e tem quatro.
As paredes à sua volta, no coração de Ramallah, enchem-se de pinturas alusivas à resistência palestiniana e mensagens de apelo para o "fim do genocídio", ou ainda reproduzindo os rostos de vítimas, que são reclamadas como "mártires" abatidos pelas "forças colonialistas".
O palestiniano de Gaza adverte que não percebe muito de política, "mas pode ser que esta história dos europeus seja uma oportunidade" de voltar para a sua família.