País esperou mais de 70 anos por um momento que fica na História pela divisão entre a euforia e a abominação pelas tradições. Defensores da República acabaram detidos.
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Sem atrasos, Carlos e Camila saíram do Palácio de Buckingham vestidos a rigor. Debaixo da chuva intensa que caiu durante toda a manhã, o casal dirigiu-se à Abadia de Westminster enquanto era ovacionado pela multidão que ecoava gritos de emoção. A meio do percurso, em Trafalgar Square, uma mancha amarela rompeu o mar azul, vermelho e branco. Centenas de membros da organização Republic aproveitaram o momento para manifestar o que já têm vindo a pedir desde 1983: o fim da monarquia. Junto à estátua de Carlos I - o grande impulsionador do fim do absolutismo - gritavam "not my king" (não é o meu rei), tentando abafar o ruído dos entusiastas. Setenta anos depois, a coroação do soberano fica marcada pela antítese entre os que querem ver prevalecer a tradição e os que defendem um recomeço.
Faltavam mais de duas horas para o início da cerimónia milenar, quando as perpendiculares que dão acesso às ruas que serviram o cortejo dos reis já se encontravam encerradas por enormes barreiras que impediam a circulação a pé. Os mais atrasados tentavam furar os locais de passagem, mas o olhar atento dos milhares de polícias não o permitiu. Quem conseguiu escapar entre os pingos da chuva, sentiu que estava a fazer parte da História.
Um rei mais moderno
Debbie, Mark e o companheiro de quatro patas Rubbens não quiseram perder pitada. Fiéis seguidores da família real, em menos de um ano marcaram presença em três eventos da monarquia. "Viemos apoiar o nosso rei. Não terá um caminho fácil depois do trabalho feito pela mãe, mas tem a vantagem de ser mais moderno", constatou a britânica, enquanto dava pequenos biscoitos ao cão de pelo felpudo, que, tal como os donos, envergava vestimenta adequada à data.
Mais à frente, encontrava-se Eorgina acompanhada pela mãe e pelas duas filhas: a mais velha, de três anos, pousada sobre os ombros, já a mais nova, de apenas um, estava encaixada nas costas da progenitora. "Adoramos o rei e este ambiente, mas o que realmente nos trouxe cá é o facto de o meu marido estar a desfilar na parada militar. É oficial e não poderíamos estar mais orgulhosas", revelou, ao passo que tentava acalmar a caçula de rosto irritado, no qual as gotas da chuva que ensombraram a festa se confundiam com as lágrimas de choro.
A poucos metros, em Westminster, prosseguia a cerimónia. Os altifalantes davam uma maior percepção do seguimento da celebração. O momento em que foi colocada na cabeça de Carlos a Coroa de Santo Eduardo, quando passavam dois minutos do meio dia, foi dos mais eletrizantes. O herdeiro consagrou-se reinante e o povo clamou em uníssono: "God Save The King".
No meio do frenesim, e entre a agitação incessante de pequenas bandeirinhas do país, ouviu-se "not my king".
Detenções e revolta
A manhã de hoje começou agitada para os defensores da República. Graham Smith, líder da organização anti-monarquia Republic, e outros cinco ativistas foram detidos no ponto de encontro, em Trafalgar Square, por estarem a usar um megafone. A Polícia - que mais tarde referiu 52 detidos - prometeu tolerância zero para qualquer ato que implicasse a perturbação dos festejos, e cumpriu. Revoltados com o episódio, os restantes membros não arredaram pé de frente da Galeria Nacional, firmando uma barreira fictícia, mas notória aos olhos de quem passava, lado a lado com os apoiantes da realeza.
Lottie chegou pouco depois do amanhecer. A estudante tem 18 anos e almeja um futuro diferente. "A existência da monarquia é inútil. O dinheiro público que está a ser gasto deveria ser usado para ajudar os pobres". Acredita que este é um momento de viragem e a altura certa para a emergência da república. "Se as pessoas se interessam pela História, então sugiro que os palácios sejam transformados em museus", respondeu, quando questionada sobre o interesse que a Coroa desperta.
Sessenta e três anos separam as vidas de Sandra e Lottie, mas as convicções são as mesmas. A britânica de 81 anos cresceu a ver Isabel II reinar e não se coibe em admitir que "foi uma monarca incrível". Sobre Carlos a perspetiva é diferente. Considera-o uma pessoa "sentimental", que não será capaz de endossar o fôlego de que o Reino Unido necessita. Apesar de gostar de William, quer um novo rumo e idealiza a reestruturação das instituições políticas: desde Buckingham até à Câmara dos Lordes. "Esta é a hora certa".
Mais colérico, Phil veio da República da Irlanda para se manifestar sobre uma realidade que não é a dele, mas com a qual não se compadece. "Vivemos uma crise e o rei reside no luxo. Deveria pagar a coroação", exclamou.
Ao mergulhar no tempo, recorda o episódio que ficou conhecido como "Domingo Sangrento", quando, em 1972, treze pessoas morreram depois de o Regimento de Paraquedistas do Exército Britânico ter aberto fogo em Bogside. "Não me esqueço do mal que fizeram. São uns criminosos", refletiu o católico de 56 anos.
A organização quer agora a realização de um referendo, mas a julgar pela euforia dos britânicos quando os monarcas apareceram na varanda do palácio, o resultado pode não ser favorável a uma mudança no panorama atual.