Figura Internacional de 2022: Zelensky, a jornada improvável de um herói acidental
O presidente ucraniano impôs-se na cena internacional como rosto da resistência contra a ofensiva desencadeada pela Federação Russa, que veio transfigurar o Mundo.
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Transitou do palco para a arena política com a destreza de quem finta probabilidades e se ajusta à retórica que seduz o auditório. Do exercício de ator, que se impôs logo depois de cumprida a formação em Direito, manteve o discurso mordaz da comédia que instiga, desalinha e ousa espetar o dedo na ferida. Do político imberbe, que em 2019 conquistou com estrondo a presidência ucraniana, o mundo pouco conhecia, para além da polémica incendiária em que, nesse ano, se viu embrulhado por Donald Trump e que valeu um primeiro 'impeachment' ao presidente norte-americano. A 24 de fevereiro de 2022, impõe-se novo guião para o chefe de Estado cuja popularidade assumia já curva descendente. A Federação Russa, superpotência nuclear com que a Ucrânia partilha fronteira a Leste, avança com ímpeto de trovão sobre o grande celeiro da Europa, e Volodymyr Zelensky posiciona-se, desde o primeiro momento, na boca de cena de uma narrativa de resistência que lhe garante a aclamação global.
Filho de pais judeus, nasceu na cidade industrial de Kryvyi Rih, no Sul da Ucrânia, região de falantes de russo, a que juntou o domínio da língua ucraniana e do inglês. Forma-se no campus local da Kyiv National Economic University, onde completa, no ano de 2000, a licenciatura em Direito. Ainda estudante, atravessa-se o teatro no caminho e é à carreira de ator que entrega o destino, com a formação, ainda em 1997, do grupo performativo Kvartal 95, com que inicia presença televisiva regular. O grupo converte-se no Studio Kvartal 95, companhia de produção que se torna uma das mais bem sucedidas da Ucrânia.
Daí até ao acordo com a estação televisiva 1+1, detida pelo milionário Ihor Kolomoisky, foi um passo. Relação que se torna alvo de escrutínio quando Zelensky declara intenção de avançar para as areias movediças da política. A carreira no entretenimento cruza-se com as convulsões que tomam a realidade ucraniana e partir de 2014, com a célebre Revolução de Maidan, em Kiev, a impor a queda do presidente Viktor Yanukovych e a ascensão de Petro Poroshenko. É neste contexto que nasce a série televisiva "Servant of the People (Servo do Povo)", que Zelensky protagoniza ao dar corpo a um professor que se torna um fenómeno mediático ao proferir um discurso inflamado contra a corrupção que conduz a personagem à presidência da Ucrânia.
Em 2018, a "Servant of the People" é convertida em partido político. A vida a imitar a arte, e Zelensky alinha-se entre um punhado de candidatos às presidenciais de 2019, emergindo na dianteira desde o momento em que anuncia a candidatura, alavancado pela popularidade televisiva. O candidato-ator assume uma estratégia de campanha não ortodoxa, com intensa imersão nas redes sociais que lhe garante base eleitoral sólida. É eleito, a 21 de abril de 2019, com uns expressivos 73% dos votos.
Se o conflito na região do Donbass já traduzia uma das maiores ameaças à estabilidade europeia, a manhã de 24 de fevereiro impõe no velho continente a maior convulsão desde a Segunda Grande Guerra. A presença de tropas russas na Bielorrússia, ao longo da fronteira com a Ucrânia, já fazia prever a ofensiva em larga escala que Zelensky tentou travar até ao cair dos primeiros mísseis. Na madrugada do famigerado dia 24, lança um apelo televisivo pela paz, dirigido ao povo russo. Logo depois, Vladimir Putin anuncia o arranque da "operação militar especial" que é só gatilho para o avanço de mísseis e artilharia a partir do Leste, do Norte (através da Bielorrússia) e do Sul (desde a península anexada da Crimeia).
Zelensky torna-se o rosto da resistência ucraniana, na linha da frente de uma intensa jornada mediática para congregar apoios que permitam combater a força invasora e manter as atenções do mundo voltadas para uma guerra que a propaganda do Kremlin vende como necessária para "desnazificar" o país. Quando os Estados Unidos se propõem retirá-lo do que é agora território atravessado pela toada das sirenes que anunciam ameaça aérea, Zelensky responde: "O combate é aqui. Preciso de munições, não de boleia". E o mundo desperta para a resiliência de um presidente que não recua, que desafia os mísseis de Moscovo ao filmar-se a céu aberto, no centro de Kiev, em resposta à acusação soprada pelos russos de que teria deixado a capital. Com uma imagem de onde nunca escapa o verde-camuflado, assume presença quotidiana nas redes, diante da câmara, com um diário marcial e noturno.
O presidente ucraniano desdobra-se em intervenções à distância para as plateias mais decisivas no xadrez global, com discursos que gritam por apoio militar e humanitário, diante de parlamentos (inclusive o português), cimeiras da NATO, do G7, do G20. "Provem que estão do nosso lado. Provem que não nos vão deixar cair. Provem que são realmente europeus, e só assim a vida vencerá a morte e a luz vencerá as trevas", atirou Zelensky, em mensagem dirigida ao Parlamento Europeu. E a União Europeia reagiu, com sucessivos pacotes de apoio a Kiev e outros tantos de sanções a Moscovo, a que se juntou o apoio expressivo dos Estados Unidos, país que acolheu, já em Dezembro, a primeira deslocação ao exterior de um chefe de Estado convertido em líder de um combate pela liberdade e autodeterminação dos povos, empenhado em quebrar o ciclo de opressão que marcou a Ucrânia no curso da História.
A ILUSTRADORA
Olga Logvinova - Artista ucraniana
Olga é uma artista da Ucrânia, que, em março, fugiu da guerra. Trabalhava no teatro de Kharkiv em cenografia e adereços. Em Portugal, procura emprego e uma nova vida. Veja aqui outros trabalhos de Logvinova.