Flexibilidade justifica alta sobrevivência infantil nos escombros na Turquia e na Síria
Maleabilidade das crianças mostra-se fulcral nas operações de resgate na Turquia e Síria, nas quais têm sido, em muitos casos, as poucas sobreviventes entre os escombros.
Corpo do artigo
Muhammed Acar, de nove anos, e o irmão Omer, de apenas sete meses, foram ontem resgatados na província de Sanliurfa, no Sudeste da Turquia, após estarem 58 horas sozinhos debaixo dos escombros do prédio onde viviam com a família, da qual não se conhece o paradeiro. A este final feliz juntam-se as histórias de uma bebé síria nascida entre os destroços, de duas irmãs entrelaçadas ladeadas pelo betão e de um menino pendurado num telhado a rezar. Todos os casos têm em comum o facto de envolverem crianças que conseguiram emergir com vida entre as ruínas, o que tem levado à construção ideológica da ocorrência de milagres. Os muitos casos de sobrevivência infantil que se registam perante este tipo de catástrofe têm, no entanto, como justificação o tamanho e a flexibilidade que caracterizam os mais novos.
Paula Neto, pediatra do INEM, que já esteve envolvida em operações de socorro em África, explicou ao JN que o facto de muitas crianças e bebés estarem a ser resgatadas com vida deve-se à capacidade de se "conseguirem colocar em lugares em que se os adultos estivessem, possivelmente, ficariam esmagados", sendo beneficiados pelo seu tamanho, bem como por terem mais maleabilidade do que um adulto.
Apesar destas características aumentarem a probabilidade de as autoridades terminarem a ação de resgate com elevado sucesso, também há particularidades que fazem dos mais pequenos seres com maior vulnerabilidade. "Desidratam mais facilmente e as reservas metabólicas acabam por ser inferiores às dos adultos", o que faz com que não consigam passar tantas horas sem comer ou beber, indica a médica, acrescentando que o instinto de sobrevivência de um adulto é muito mais aguçado.
"É trauma após trauma"
Ainda assim, lembra a socorrista, a viabilidade de se encontrar pessoas com vida varia "de caso para caso", mas vai diminuindo à medida que o tempo passa, o que, tendo em conta o contrarrelógio que as autoridades vivem nos dois países afetados, deverá fazer cair abruptamente as notícias que contemplam desfechos sorridentes. Tal como indica ONU, há apenas uma janela de sete dias para resgatar com vida os soterrados.
Porém, quatro dias depois dos terramotos começam a surgir outros desafios além dos trabalhos de salvamento dos vivos e resgate dos mortos. Milhares de pessoas perderam as casas e estão agora a viver em campos de refugiados, onde, ao relento, fazem orações conjuntas e enchem-se de esperança de encontrar os entes queridos. A luz ao fundo no túnel é, contudo, difícil de captar, sobretudo para quem ficou órfão.
"É improvável que uma única criança tenha saído ilesa das zonas que foram devastadas, física ou psicologicamente", vincou Joe English, porta-voz da UNICEF, informando que a organização ainda não tem um número exato de vítimas menores. O responsável destaca ainda que o efeito psicológico que estas crianças estão a viver terá consequências futuras, realçando o caso dos meninos sírios que, depois de 12 anos de guerra, vêem a situação piorar. "É trauma após trauma", frisou English, notando que "há um longo caminho para a recuperação".
Esta quarta-feira, as autoridades tinham registado 11 527 mortos, 9057 na Turquia e 2470 na Síria. A Organização Mundial de Saúde alerta, todavia, que o número de óbitos pode chegar aos 20 mil.
Entrevista a Paula Neto, pediatra do INEM
Sobrevivem no meio da morte da família
Como justifica o resgate com vida de tantas crianças que estiveram várias horas sob os escombros?
Do ponto de vista genérico, as crianças não têm maior capacidade de sobrevivência neste tipo de situações, aliás, têm maior risco de complicações quando estão privadas da alimentação ou de líquidos. Objetivamente, a criança não é mais resistente do que o adulto. Penso que aquilo que tem acontecido relativamente ao facto de ainda serem encontradas muitas crianças comparativamente com os adultos é que as estas conseguem colocar-se em lugares em que se os adultos estivessem, possivelmente, ficariam esmagados.
As crianças que sobrevivem a situações desta amplitude irão carregar traumas para a vida?
Além dos danos físicos, que podem levar a que as crianças nunca mais recuperem a mobilidade devido a traumas e fraturas, há a questão da carga emocional, até porque muitas delas sobrevivem no meio da morte do resto da família. Ao longo da vida, estas crianças podem depois sofrer de, por exemplo, claustrofobia, o que as fará ter sintomatologia física que irá impedi-las de estar bem fisicamente, sobretudo em espaços confinados. Pode ainda refletir-se na interação com os outros e ter graves implicações no seu crescimento, nomeadamente no que diz respeito ao desenvolvimento psicológico.