O caminho do Apóstolo era, esta segunda-feira, pesado e triste. O negro do luto pelos 79 mortos no descarrilamento do comboio de alta velocidade, em Santiago de Compostela, encheu a Praça do Obradoiro e a Catedral para o funeral oficial das vítimas.
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A homenagem da Galiza anónima e o tributo oficial às vidas perdidas numa curva do caminho férreo juntou o presidente do Governo espanhol, Mariano Rajoy, e os príncipes das Astúrias, Felipe e Letizia, a centenas de populares.
O portão da catedral encheu-se de flores, de mensagens e velas do mundo trazido a Santiago de Compostela. Da Venezuela à Dinamarca. "Galiza volta a chorar" por essa tragédia que, "sem compaixão de idade", roubou a vida "dos que vinham celebrar o apóstolo", lê-se num bilhete preso às grades.
Na Praça, em frente à catedral, juntaram-se os que vieram homenagear os mortos aos que, finda a peregrinação, foram surpreendidos pela catedral fechada para o funeral oficial.
Por lá ficaram, uns e outros, enchendo a praça, pressentindo a dor dos que, dentro da catedral, se despediam uma outra vez daqueles que a velocidade ceifou numa curva chamada A Grandeira.
A essa hora, pela Galiza, pelas cidades e vilas de Espanha, desciam à terra muitos dos que eram lembrados em Santiago de Compostela. Estevan Maio estava na Praça de Obradoiro, preto carregado, com a saudade ali, mas com o coração longe, na Andaluzia onde, por essa hora, eram sepultados os dois amigos que viajavam no comboio, para 15 dias em sua casa. Acendeu-lhes uma vela, ajeitou junto da luz a miniatura de um toiro, dos que davam trabalho aos três vaqueiros, e uma medalha, a pedido dos pais. "Não tenho possibilidade de ir à Andaluzia, por isso vim aqui", explicou Estevan Maio ao JN.
Gente do campo, como os dois amigos que vinham juntar-se a Esteban, entendem as coisas da natureza, mas recusam aceitar os desastres da civilização. "Nos tempos que correm isto não pode acontecer... Não está de acordo com os tempos", lamenta.
De Angrois, terra de gente simples que a tragédia colocou na rota mediática, vieram dois autocarros à cerimónia da Catedral, celebrada pelo arcebispo de Santiago de Compostela, Julián Barrio. Homenageados e distinguidos, uma vez mais, os habitantes de Angrois clamam pelo anonimato perdido na hora em que saltaram para acorrer aos 218 passageiros que seguiam no comboio.
Querem sofrer em sossego, sarar as feridas de quem tudo viu, numa noite em que um monte de ferro, de sangue e de dor lhes entrou pela porta dentro. "Estamos cansados e tristes", explica Martins Jose, habitante de Angrois. "Somos gente simples...", diz, contando que, ainda há um mês, tudo o que lhes faltava era um parque infantil e uma paragem de autocarro coberta. "Coisas simples" de gente simples que quer apenas seguir a vida normal.
O estatuto de heróis e o desassossego das almas permitem-lhes reclamar pela segurança, agora que todos veem que não é adquirida, nas bermas do caminho de ferro que divide Angrois. "Já pedimos garantias de que o comboio passe aqui a baixa velocidade", explica Martins Jose, que, desde quarta-feira, se inquieta de cada vez que a filha, Celia, de seis anos, sai porta fora para brincar na rua, como se brincava em Angrois antes do descarrilamento.
Há uma vida antes e depois do acidente e a certeza de que nada jamais será igual. Joana Mendez, 81 anos, sente-o no coração, fraco, que já hesita ao bater. "Há três noites que não durmo, com os nervos", conta, à porta da casa com vista para o local do acidente. "Que não volte a acontecer", deseja, olhar marejado de lágrimas, inquieta com os peregrinos que passam, a cantar, ignorando que foi ali que morreram 79 pessoas.