Guerra: "A detenção do núcleo duro de Putin pode não acontecer agora, mas vai acontecer"
Condenação de altas figuras do Estado russo é "inevitável", refere jurista portuguesa que trabalha na Academia de Nuremberga. Criação de tribunal especial deverá acelerar processo
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Assassínio de civis, violação de mulheres e menores, atos de tortura a prisioneiros, deportação ilegal de crianças e destruição do património foram alguns dos crimes de guerra perpetrados em território ucraniano ao longo do último ano. Ainda sem um fim à vista para o conflito, é possível perspetivar a condenação dos responsáveis no seio da Justiça internacional? Para Anabela Alves, jurista portuguesa na Academia de Nuremberga, na Alemanha, a resposta é óbvia: "Sim". "A detenção do núcleo duro de Putin pode não acontecer agora, mas vai acontecer. É inevitável", assevera.
Quatro dias após a Rússia invadir o Estado vizinho, a 24 de fevereiro de 2022, o procurador do Tribunal Internacional Penal (TPI), Karim Khan, anunciou que iria iniciar uma investigação aos delitos e, desde então, várias equipas internacionais deslocaram-se para o terreno para recolher provas - além do trabalho já realizado pelo Gabinete do Procurador-Geral da Ucrânia, que, no início de fevereiro, contabilizava cerca de 66 mil crimes de guerra.
Processo de recolha
Em cooperação com os investigadores do órgão jurídico internacional, estão também os especialistas da Agência da União Europeia para a Cooperação em Justiça Criminal (Eurojust) que foram enviados para a Ucrânia com o mesmo propósito. Nas cidades massacradas pelos horrores da guerra, encontram-se ainda organizações não-governamentais, como é o caso da Amnistia Internacional (AI), que estão igualmente a compilar evidências que, posteriormente, serão entregues ao TPI.
No caso da AI, em paralelo com os trabalhos em busca de provas físicas, as equipas recorrem a tecnologias, que "são um verdadeiro laboratório de provas", explica Pedro Neto, diretor executivo da organização em Portugal. "Usamos programas de imagens de satélite que monitorizam as movimentações dos militares de ambos os lados. Também consultamos vídeos e fotografias que as pessoas publicam nas redes sociais, e é aqui que também é possível recolher muitas provas", destaca, ao salientar o papel que a internet tem tido na ofensiva.
A libertação gradual de território ucraniano - como aconteceu em Bucha, Irpin ou Kherson - tem trazido ao de cima as marcas dos crimes mais macabros, tendo sido fulcral para que as equipas consigam detetar as provas, esclarece Anabela Alves. Contudo, uma das maiores dúvidas prende-se com a forma como os responsáveis serão capturados e, eventualmente, condenados, uma vez que tanto o país agressor como o país invadido não são parte do Estatuto de Roma.
Apreensões em breve
"Não será um problema", elucida a jurista, ao lembrar que, ainda antes da ofensiva russa, a Ucrânia reconheceu todos os efeitos jurídicos e práticos do TPI, o que faz com que "esteja sob a sua alçada", permitindo que qualquer indivíduo ou Estado que cometa crimes contra o seu território e população possa ser julgado em Haia - o que ao fim de um ano de guerra ainda não aconteceu, já que os soldados condenados até agora foram sentenciados por tribunais ucranianos.
"Para já as coisas estão a avançar lentamente, mas acredito que com o movimento do Conselho Europeu, brevemente iremos ver um tribunal especial a formar-se. As apreensões vão acontecer em breve", reitera a jurista, ao enaltecer a necessidade de se criar um outro órgão judicial que atue em concordância com os princípios do TPI.
"No caso da Ucrânia, o crime de agressão não está contemplado porque este só ativa a jurisdição do TPI se os dois Estados em conflito pertencerem ao Estatuto de Roma", explica, acrescentando: "Como não é possível trazer o Putin e os seus generais para o TPI, será criado um tribunal especial europeu para julgar apenas este tipo de crime", afirma, ao lembrar a promessa de Ursula Von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, quando, no início do mês, visitou a capital ucraniana pela quarta vez.
Casos "chocantes"
Apesar da relutância sobre a chegada de Putin e dos aliados à barra dos tribunais, a jurista, que foi conselheira dos magistrados que julgaram os crimes de guerra na Bósnia, lembra que "ninguém acreditava na condenação de Milosevic, mas a verdade é que esse dia histórico chegou". "Se Putin continuar de boa saúde, o seu dia irá chegar", endossa.
Também Pedro Neto, que tem em mãos inúmeros testemunhos de crimes de guerra, acredita que as altas patentes russas não sairão impunes. "As circunstâncias mudam e a justiça há de acontecer. Nós estamos a fazer a nossa parte", afiança, ao revelar que os depoimentos prestados pelas vítimas são "chocantes". "Os russos entraram pela casa e mataram o marido à frente da esposa e do filho menor. A seguir violaram repetidamente a senhora", contou, depois de assistir a um dos muitos testemunhos.
Primeiro soldado russo condenado
Em maio de 2022, Vadim Chichimarine foi o primeiro russo a ser levado à Justiça por ter executado um civil. Em primeira instância, um tribunal de Kiev condenou-o a prisão perpétua por crimes de guerra e homicídio premeditado, mas, dois meses mais tarde, viu a pena ser reduzida para 15 anos. Seguiram-se os casos de Alexander Bobikin e Alexander Ivanov, acusados de bombardear Kharkiv, e Mikhail Romanov, o primeiro condenado por violação. Até agora, 25 russos já foram julgados em tribunais ucranianos, porém, as condenações são alvo de críticas por parte de vários juristas, já que a jurisdição do país não contempla crimes de guerra.
Contexto histórico
O que é um crime de guerra?
De acordo com as Convenções de Genebra, de 1949, é o ato de causar, intencionalmente, ofensas graves à integridade física. É uma ação militar em que uma das partes em conflito ataca, voluntariamente, alvos civis ou materiais não militares. Tortura e deportação ilegal de indivíduos também constituem crimes de guerra.
Qual a função do Tribunal Penal Internacional?
Localizado em Haia, nos Países Baixos, é o primeiro tribunal internacional permanente e é baseado num tratado, o Estatuto de Roma, criado com o objetivo de julgar indivíduos pela prática dos mais graves crimes internacionais: genocídio, crimes contra a Humanidade e crimes de guerra. Como tribunal de última instância, procura complementar, e não substituir, os tribunais nacionais.