Guterres admite que Conselho de Segurança da ONU "falhou" mas não deita toalha ao chão
Guterres e Zelensky estão alinhados na prioridade de evacuar Mariupol, bastião da resistência ucraniana. O secretário-geral da ONU exaltou-se para dizer que não quer "ser uma estrela na Comunicação Social" e que, neste momento, ser cauteloso é a melhor forma de "salvar pessoas". Do lado ucraniano, Kiev está pronta a encetar negociações para retirar civis e desvalorizou os "pseudo-referendos" separatistas.
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No fim da visita desta quinta-feira a Kiev, cidade onde testemunhou a "destruição e violação do estado de Direito" cometidas pelas forças russas e que foi hoje atingida por bombardeamentos russos, várias semanas depois do último ataque, António Guterres apelou ao Tribunal Penal Internacional (TPI) para que "faça o seu trabalho no sentido de haver uma real responsabilização" pelos crimes cometidos na Ucrânia, que descreveu como "epicentro de uma dor imensa".
Falando junto do presidente ucraniano, a partir da capital, o secretário-geral das Nações Unidas reiterou o que já tinha manifestado há dois dias em Moscovo - que a invasão russa na Ucrânia é "uma violação da integridade territorial e da Carta das Nações Unidas" - e voltou a pedir à Rússia que colabore no sentido de alcançar um cessar-fogo, assegurando estarem "a decorrer negociações para evacuar Mariupol", cidade que vive "uma crise dentro de uma crise", onde cerca de mil civis estão retidos no "apocalipse" da metalúrgica Azovstal.
O líder da ONU também admitiu que o Conselho de Segurança não teve sucesso nos esforços para "prevenir e acabar" com a guerra. "Deixem-me ser muito claro: o Conselho de Segurança falhou em fazer tudo ao seu alcance para prevenir e acabar com esta guerra. E esta é a fonte de grande deceção, frustração e raiva", disse Guterres, em conferência de imprensa conjunta com Volodymyr Zelensky, destacando, por outro lado, o papel da ONU - que tem nove unidades espalhadas pelo país em coordenação com as autoridades ucranianas - na frente humanitária, nomeadamente no que diz respeito à proteção e à prestação de cuidados de saúde de milhares de vítimas no terreno.
"Todo este trabalho é essencial mas não resolve as causas de base do problema, que é a própria guerra", reconheceu António Guterres, reiterando que "a paz tem de ser estabelecida de acordo com a Carta das Nações Unidas e a lei internacional", garantindo a Zelensky que esse propósito não será abandonado pela comunidade internacional. "Não desistiremos!", assegurou.
Não quero ser uma estrela na Comunicação Social
No início da ronda de perguntas dos jornalistas, Guterres sublinhou que tem sempre demonstrado coerência: "Aquilo que disse em Moscovo, que digo aqui e que costumo dizer em Nova Iorque é exatamente a mesma coisa". E insistiu, mais do que uma vez, que não vai fazer declarações que possam ameaçar as negociações de paz. Respondendo a uma questão de uma jornalista suíça dirigida a Zelensky sobre as garantias concretas de segurança que Kiev está a exigir à Rússia, Guterres endureceu o discurso e pediu a palavra: "Minha senhora, o que é que a senhora pretende?! Quer que as pessoas sejam salvas ou quer que eu diga alguma coisa que possa ser um obstáculo à salvação dessas pessoas? O que lhe posso dizer é que estamos a fazer tudo, absolutamente tudo, o que é possível para que isso aconteça, mas não vou entrar em qualquer tipo de comentário ou discussão que possa pôr em causa aquilo que são as negociações com a Federação Russa."
"O que é importante é salvar as pessoas", insistiu Guterres, rejeitando questões sobre a posição russa e asseverando que não quer "ser uma estrela na Comunicação Social" e que "a única forma de salvar as pessoas é ser muito cauteloso".
Zelensky: Guterres já viu "genocídio"
Falando junto de Guterres, o presidente ucraniano disse que o secretário-geral da ONU já viu o "genocídio" provocado pelas "forças ocupantes" na Ucrânia e sublinhou a importância de "estabelecer um tribunal internacional contra a Rússia" e de "haver registo de todos os crimes contra a Humanidade que estão a ser cometidos" nesta invasão.
O presidente ucraniano apontou também como prioridade a retirada de cidadãos de Mariupol, "o que não aconteceu ainda, uma vez que continuam os bombardeamentos", e assegurou que a Ucrânia está pronta a "encetar negociações de imediato para garantir que há esta saída destes civis". Indicou também que, de acordo com fontes oficiais da Rússia, o país recebeu um milhão de pessoas vindas da Ucrânia, mas ressalvou que, desse número, 500 mil foram "deportadas à força", pelo que pediu garantias em como essas pessoas estão vivas e livres, não "escravas" das forças russas.
Falando aos jornalistas, Volodymyr Zelensky manifestou ainda preocupação com o aumento do preço dos bens alimentares, que, considerou, está a provocar uma crise à escala internacional. "É preciso evitar que isso aconteça", apelou Zelensky, sublinhando que é necessário "estabilizar o mercado global", o que passará, por exemplo, por retomar as operações normais do porto de Odessa e outros portos de mar, e cessar os ataques a explorações agrícolas do país.
Podemos continuar a brincar a referendos, não vão resultar em nada
Questionado sobre notícias que dão conta da organização de um referendo em Kherson pela independência da região, numa altura em que tem sido divulgada informação sobre a realização de outros referendos noutras cidades, respondeu que "esses pseudo-referendos" podem acontecer "em teoria", dando como exemplo "o início desta guerra" ou a anexação da Crimeia, mas assegurou que a Ucrânia e o "mundo civilizado" nunca vão reconhecê-los. "Não se pode e não se consegue juntar à força um outro território à Rússia", apontou.
Os ucranianos, acrescentou, "mostraram que conseguem combater até os tanques", pelo que também vão combater os "camiões que se diz que vieram para preparar referendos", que, considerou, não só não vão funcionar como podem até complicar possíveis negociações entre a Rússia e a Ucrânia: "Podemos continuar a brincar a referendos, não vão resultar em nada."