A guerra entre Israel e o movimento palestiniano Hamas tem motivado desde o primeiro momento acusações cruzadas de genocídio e a memória do Holocausto voltou às bocas do mundo, entre a explosão de manifestações de natureza antissemita e islamofóbica.
Corpo do artigo
No sábado assinala-se o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, ou 'Shoah' em hebraico, que coincide com o aniversário da libertação pelo Exército soviético do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, em 27 de janeiro de 1945 na Polónia ocupada pela Alemanha nazi, após a eliminação pelo Terceiro Reich de um número calculado em seis milhões de judeus.
Quase 80 anos separam este genocídio do massacre, no sul de Israel em 7 de outubro, de 1140 pessoas, segundo as autoridades israelitas - algumas das quais sobreviventes do Holocausto -, numa operação sem precedentes do movimento islamita palestiniano Hamas, dando origem à atual guerra na Faixa de Gaza.
O chefe do Governo de Telavive, israelita, Benjamin Netanyahu, descreveu o ataque do Hamas como "uma selvajaria nunca vista desde o Holocausto" e o Presidente israelita, Isaac Herzog, reforçou estas palavras, observando que "nunca foram mortos tantos judeus num só dia" desde o programa nazi de "solução final".
As evocações do Holocausto nunca mais pararam e viraram-se até contra Israel, à medida que as suas forças intensificaram a operação "Espada de Ferro" no enclave palestiniano, que, segundo o Governo local, controlado pelo Hamas, já deixou mais de 25 mil mortos, na maioria mulheres e crianças, uma catástrofe humanitária.
Logo na primeira semana desta campanha, as Brigadas al-Qasam, braço armado do Hamas, referiram-se ao "Holocausto que o inimigo está a cometer" na Faixa de Gaza, seguidas por vozes no mesmo sentido no mundo árabe e também do Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, que comparou Netanyahu ao "'führer' [Adolf Hitler] dos nossos dias" e as imagens de soldados israelitas a reunir prisioneiros palestinianos seminus aos campos de concentração nazis.
As críticas contra a violência, os apelos para um cessar-fogo permanente e abertura de negociações para uma solução definitiva de dois estados têm sido recebidos com aversão em Telavive, que recorrentemente os coloca ao lado da defesa do Hamas ou de manifestações antissemitas.
Quando em 24 de outubro o secretário-geral da ONU, António Guterres, defendeu que os ataques do Hamas "não aconteceram do nada", em alusão a décadas de "ocupação sufocante" da Palestina, ao mesmo tempo que condenava os ataques do grupo palestiniano, foi de imediato contestada a sua imparcialidade e exigida a sua demissão.
"Senhor secretário-geral, em que mundo vive?", questionou o então chefe da diplomacia israelita, Eli Cohen, secundado pelo embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan, que criticou Guterres por ver "o massacre dos terroristas nazis do Hamas de forma distorcida e imoral".
O mesmo diplomata surgiu, uma semana depois, perante o Conselho de Segurança da ONU com uma Estrela de David amarela ao peito, numa referência ao símbolo de identificação imposto aos judeus pelos nazis.
Este gesto desagradou a Dani Dayan, líder do Museu Yad Vashem, memorial oficial em Jerusalém para recordar as vítimas do genocídio do povo judaico, afirmando que "desonra tanto as vítimas do Holocausto como o Estado de Israel" por simbolizar o desamparo sofrido há oito décadas e que, hoje, os judeus são donos do seu destino e usam "uma bandeira azul e branca na lapela, não uma estrela amarela".
As trocas de acusações atingiram um dos seus pontos altos no início de dezembro no Conselho de Direitos Humanos em Genebra, em vésperas do 75.º aniversário da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, adotado no rescaldo da II Guerra Mundial.
"Setenta e cinco anos depois, os judeus ainda são alvo de ataques e ainda sentem a violência do antissemitismo e do ódio", disse uma representante israelita, adicionando: "O Hamas e os seus apoiantes encorajam a erradicação do povo judeu há anos".
Em resposta, a missão do Irão acusou os líderes israelitas de "incitamento ao genocídio", enquanto a palestiniana advertiu que "os sinais de alerta devem levar à ação", num momento em que, a par dos relatos de atrocidades em Gaza, começaram a surgir vozes da ala ultrarradical do Governo de Netanyahu defendendo a deportação da população do enclave.
Em 11 de janeiro, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), a mais alta instância judicial da ONU, começou a apreciar em Haia uma queixa da África do Sul, que viveu sob o regime de segregação racial 'apartheid' durante mais de 40 anos, contra Israel pela prática de "atos de genocídio do povo palestiniano", culminando décadas de opressão nos territórios ocupados.
As autoridades israelitas reagiram com "repugnância" ao que consideram ser uma difamação da África do Sul e nomearam para seu representante no TIJ Aharon Barak, ex-juiz do Supremo Tribunal de Israel e sobrevivente do Holocausto, que foi novamente evocado por Netanyahu a pretexto do processo em Haia.
Desde 07 de outubro, os atos antissemitas e islamofóbicos dispararam à escala global, incluindo agressões verbais e físicas, insultos ou ameaças 'online' e nas redes sociais, danificação e mensagens de ódio em sinagogas, mesquitas, residências e empresas, e a invasão do aeroporto do Daguestão, no sul da Rússia, por uma multidão enfurecida em busca de passageiros de origem judaica.
O aumento dos crimes de ódio visando judeus ou muçulmanos atingiu em vários países uma expressão sem precedentes nas últimas décadas, levando autoridades de países como a Alemanha, Áustria, Estados Unidos ou Austrália a endurecer as suas medidas contra atos de natureza xenófoba, apologia do nazismo e negação do Holocausto.
Entre incontáveis manifestações em sinal contrário em todo o mundo, logo após os ataques do Hamas e início da retaliação de Israel, e perante os primeiros sinais de antissemitismo, os líderes alemães vieram a público expressar a sua condenação e vergonha enquanto representantes do país que criou o Holocausto.
Recusando comparações com os acontecimentos na Faixa de Gaza, para o chanceler Olaf Sholz chamou a necessidade de "honrar a promessa feita repetidamente nas décadas seguintes a 1945", e o compromisso "nunca mais" deve ser "inquebrável", declarou em novembro, numa cerimónia para assinalar o aniversário da Noite de Cristal - um dos momentos mais negros dos 'pogroms' nazis -, que foi realizada na sinagoga Beth Zion em Berlim, destruída há 85 anos e atingida nos dias anteriores por 'cocktails molotov'.
A polémica ameaça persistir já no sábado. Um líder judaico italiano protestou na terça-feira contra uma citação do escritor, poeta e sobrevivente de Aushwitz Primo Levi - que advertia para o dever do não esquecimento, porque "o que aconteceu pode acontecer de novo" -, numa convocatória para uma manifestação pró-Palestina para Roma, coincidindo com o Dia de Memória do Holocausto.
"Tenham a dignidade de expressar o que pensam sem ofender a memória de um sobrevivente e encontrem outras citações", apelou Noemi Di Segni, líder da União das Comunidades Judaicas Italianas, insistindo: "Deixem Primo Levi na nossa memória".