Ao 96.º dia, o vulcão Cumbre Vieja descansou. É hora de pensar na reconstrução, mas "a zona mudou radicalmente" e há mais dúvidas do que certezas.
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Invertem-se agora os papéis. O vulcão foi dado como extinto, depois de dez dias sem atividade, mas a angústia dos que perderam cresce, remexendo-lhes as entranhas como uma erupção iminente. Há mais de três meses que não se via sossego em La Palma, no arquipélago das Canárias, Espanha. A terra acordou, a 19 de setembro, confinou milhares de pessoas devido aos gases tóxicos e destruiu tudo à sua volta.
São mais de sete mil os habitantes arrancados de casa à força pela Natureza. Quase 500 estão alojados em hotéis, há quem durma em caravanas, vivendas de familiares e amigos. Voltarão a ter um teto? Onde e quando? Perguntas sem resposta para os deslocados do Cumbre Vieja. "Imagina-te sem casa, sem a tua vida e intimidade. Sem te poderes levantar e deitar quando queres ou cozinhar o que te apetece". O exercício, feito por Fátima Ramos, um dos rostos da Plataforma de Afetados pelo Vulcão, é simples e duro. Revelador.
Também ela perdeu a habitação que tinha em Todoque - uma das localidades que desapareceram, no município de Los Llanos de Aridane - e viu-se obrigada a arrendar casa. "A promessa do Governo é que não nos vai deixar sozinhos e vai reconstruir a localidade, mas não sabemos como nos vai restituir as casas", lamentou.
"Só queremos que haja uma indemnização justa pelo que perdemos". Até ao momento, só teve acesso às ajudas de emergência do município, destinadas ao pagamento de rendas, comida e medicamentos. De resto, sabe apenas que o apoio resultante das doações privadas já começou a ser distribuído pela câmara e que as ajudas prometidas pelo Governo espanhol - 30 mil euros por vivenda perdida - ainda não chegaram.
"Claro que eles estão a trabalhar, sabemos disso. Têm de conseguir muito dinheiro e não se pode construir tudo de uma vez. Mas, em alguma medida, precisamos de mais rapidez porque vemos os dias a passar e não nos dão certezas nenhumas", realçou.
"Muito traumático"
Desabafos que a presidente da Câmara de Los Llanos de Aridane, Noelia Leal, ouve diariamente. "Claro que os afetados não podem estar bem. Não só perderam a sua casa como o lugar onde investiram tempo e onde guardavam memórias. Está a ser muito traumático", reconheceu, garantindo estar a fazer tudo o que é possível para agilizar os apoios.
Além das ajudas de emergência, que a 20 de setembro (no dia seguinte ao início da erupção) estavam no terreno - confirma que as doações de empresas privadas já estão a ser entregues, aos poucos, havendo ainda programas específicos para alguns setores, nomeadamente comercial, agrícola e turístico.
As casas temporárias para abrigar os deslocados também já começaram a ser construídas. "Nunca um alicerce teve tanto significado", constatou. Ainda assim, há quase 600 famílias nessa situação: "não é um processo fácil".
A segunda prioridade será a reconstrução, que levará tempo. "O município mudou radicalmente, perdemos muitas zonas, agora ocupadas pela lava, e precisamos de reconstruí-las", sublinhou, assumindo que as incógnitas são mais do que muitas.
"Ainda não sabemos se podemos voltar a construir na zona da lava, por exemplo. Em alguns sítios sim, noutros não", explicou.
A vida segue
Face às incertezas, Fátima Ramos só deixa um pedido: "não nos esqueçam". E a vida segue. Porque tem de seguir. As crianças correm, entusiasmadas, pelo centro de Los Llanos e, junto a um dos hotéis que acolhe desalojados, o "Valle Aridane", alguém dentro do carro canta, descontraidamente, "Vamos pa" la playa, Pa" curarte el alma".
No porto de Tazacorte, onde a lava tocou o mar e deu à luz terra nova, um pescador, pele queimada do sol, corta pequenos pedaços de camarão, usados como isco, e lança a cana ao mar. "Havia ali mais polícias do que bananas", diz-lhe um conhecido, apontando para o Cumbre Vieja. Confirma, acenando com a cabeça. "Já vi dois vulcões, a minha irmã três. Mas este foi o pior, arrasou tudo". Silêncio. E um dos peixes acabados de pescar contorce-se dentro da saca de plástico ensanguentada.