Itália e Albânia assinaram um controverso acordo que prevê a instalação de dois centros de acolhimento de migrantes em território albanês, sob jurisdição italiana, para onde serão levados os migrantes resgatados no Mediterrâneo.
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Qual o objetivo da deslocalização de migrantes?
O objetivo do governo italiano de direita e extrema-direita liderado por Giorgia Meloni com esta "externalização da gestão migratória" é aliviar o fardo que o país, e designadamente a ilha de Lampedusa, sentiram muito em particular este ano, com a chegada de muitos migrantes irregulares desde o norte de África, e que colocaram o sistema de acolhimento à beira da rutura: desde o início do ano, desembarcaram em Itália 145 mil migrantes, contra 88 mil no mesmo período em 2022.
Quem vai ser enviado para a Albânia?
O compromisso acordado em Roma a 6 de novembro prevê a criação de "duas instalações para a entrada e o acolhimento temporário de imigrantes resgatados no mar, que poderão acolher até três mil pessoas, entre 36 e 39 mil num ano, para concluir rapidamente os procedimentos de tratamento dos pedidos de asilo ou de um eventual repatriamento".
Para a Albânia serão levados diretamente, sem passagem por território italiano, migrantes resgatados no Mediterrâneo pela Marinha e guarda-costeira italiana - mas não por navios de ONG (organizações não-governamentais) -, e ficam excluídos desta operação todos os menores, mulheres grávidas e "pessoas vulneráveis", bem como quem quer que tenha conseguido alcançar território italiano.
No porto albanês de Shengjin será construído um "hotspot" para tratar dos desembarques, da identificação e dos primeiros socorros, enquanto na zona de Gjader, a cerca de 20 quilómetros do porto, será construído um "centro de acolhimento temporário", segundo o modelo dos centros de repatriamento existentes em Itália.
A estimativa, por parte das autoridades italianas, de que os centros poderão gerir anualmente até 39 mil migrantes é o cenário mais otimista, que apenas será cumprido se não houver falhas nos chamados "processos acelerados" de avaliação dos pedidos de asilo, que Roma pretende levar a cabo no prazo de 28 dias.
Centros na Albânia sob jurisdição italiana
De acordo com o compromisso celebrado entre Roma e Tirana, os centros que vão ser construídos em território albanês deverão estar operacionais já na primavera de 2024 e, embora fisicamente na Albânia, ficarão sob jurisdição italiana.
Em Shengjin, a Itália encarregar-se-á dos procedimentos de desembarque e de identificação e criará um primeiro centro de receção e de rastreio, enquanto em Gjader criará uma estrutura do tipo de centro de acolhimento temporário para os procedimentos subsequentes.
As duas instalações são geridas pela Itália, "em conformidade com os regulamentos italianos e europeus aplicáveis, e quaisquer litígios com os migrantes estão exclusivamente sujeitos à jurisdição italiana", de acordo com o protocolo, acrescentando que, quando o direito de permanecer nas instalações cessa "por qualquer razão", a Itália transfere imediatamente os migrantes para fora do território albanês.
O protocolo especifica que, em caso de nascimento ou de morte, os imigrantes estão sujeitos à legislação italiana.
A Albânia colaborará com as suas forças policiais para a segurança e a vigilância.
Quanto paga Roma a Tirana com o acordo?
O governo italiano não divulgou valores, mas o primeiro-ministro albanês Edi Rama publicou, na sua página oficial na Internet, a versão albanesa do texto integral do protocolo, com 14 artigos e dois anexos, o segundo dos quais respeitante à "regulamentação dos reembolsos da parte italiana à parte albanesa".
O anexo prevê que, no prazo de 90 dias a contar da data de entrada em vigor do acordo, Roma pagará a Tirana "16,5 milhões de euros" para o primeiro ano de aplicação do protocolo, sendo que o mesmo tem uma duração de cinco anos e não estão discriminados pagamentos posteriores.
O montante de 16,5 milhões de euros será utilizado para "cobrir as despesas médicas, jurídicas e de gestão" dos migrantes que a Itália enviará para a Albânia enquanto aguarda para ver se recebem proteção internacional ou se são repatriados, bem como para a renovação de um antigo quartel militar em Gjader, onde deverá ser construído o centro de acolhimento temporário.
Durante o mesmo período, a Itália deverá constituir um fundo de garantia junto de um banco que exerça a sua atividade na Albânia, estabelece o protocolo.
Porquê a Albânia?
A escolha da Albânia surge como natural, dada a proximidade, geográfica e histórica, entre os dois países.
Por ocasião do anúncio, Roma apontou que o acordo resulta "da histórica e profunda amizade e cooperação que se articula nas relações comerciais" entre Itália e Albânia (que representa cerca de 20% do Produto Interno Bruto albanês), "nas relações culturais e sociais, e na luta conjunta contra todas as formas de ilegalidade".
O governo de Meloni acrescentou que, "apesar de a Albânia ainda não fazer formalmente parte da UE" - tem estatuto de país candidato desde 2014 e as negociações de adesão foram lançadas em 2022 -, "já se comporta como um Estado-membro" e nota que "a Itália sempre foi um dos maiores apoiantes da entrada de Tirana na UE".
Surpreendente é o facto de o acordo ser firmado entre uma coligação predominantemente de extrema-direita - o governo italiano formado pelos Irmãos de Itália, de Meloni; a Liga, de Matteo Salvini; e a Força Itália -, e um executivo socialista, liderado por Edi Rama.
Edi Rama deplorou as críticas da esquerda italiana e negou que se trate de um "negócio", argumentando que se trata antes de "um investimento numa amizade".
Que questões legais estão em causa?
A "externalização" da gestão de migrantes de Itália para a Albânia provocou um coro de críticas de diversos quadrantes, com ONG e partidos da oposição a deplorarem o que classificam como "um ataque ao direito de asilo" e a falarem mesmo de um "Guantanamo italiano", e levanta também uma série de questões legais.
Sendo esta a primeira vez que um Estado-membro da UE faz "outsourcing" a um país terceiro da gestão migratória, muitos terão em mente que o igualmente controverso acordo entre o Reino Unido e o Ruanda, assinado há mais de um ano mas que ainda não entrou em vigor, e foi considerado ilegal pelo Tribunal Supremo britânico, que considerou que aquele país africano não é um destino seguro.
Na quarta-feira, a comissária europeia dos Assuntos Internos, Ylva Johansson, adiantou, no entanto, que a avaliação preliminar realizada pelo serviço jurídico da Comissão Europeia aponta para que o protocolo esteja em conformidade com o direito comunitário.
Uma das questões jurídicas que se levanta é a dos desembarques seletivos, declarados ilegítimos por um tribunal siciliano, que considerou que o decreto ministerial de 4 de novembro de 2022 era ilegal porque, de forma discriminatória, apenas permitia o desembarque do navio SOS Humanity de pessoas consideradas frágeis.
Também o protocolo entre Roma e Tirana prevê seletividade, ao contemplar o desembarque de "pessoas frágeis", como menores e grávidas, em Itália, enquanto os restantes serão enviados para a Albânia.
Uma segunda questão crítica está relacionada com a externalização da jurisdição italiana para um Estado fora da União Europeia, que levanta dúvidas sobretudo a nível de aplicação da lei italiana fora das suas fronteiras.
"Guantanamo italiano". O que dizem os críticos?
A "externalização" da gestão de migrantes de Itália para a Albânia provocou um coro de críticas de diversos quadrantes, com ONG e partidos da oposição a deplorarem o que classificam como "um ataque ao direito de asilo" e a falarem mesmo de um "Guantanamo italiano".
A agência da ONU para os refugiados (ACNUR) disse "não ter sido informada ou consultada sobre o conteúdo do acordo" e apelou ao "respeito pelo direito internacional dos refugiados".
Já organizações como a Médicos Sem Fronteiras não tem dúvidas em classificar o acordo como "um ataque não provocado ao direito de asilo", apontando que "já não se trata apenas de desencorajar as partidas, mas impedir ativamente que as pessoas em fuga e as que são resgatadas no mar tenham acesso rápido e seguro ao território europeu, contornando assim as obrigações de proteção e salvamento sancionadas pelo direito internacional e pelas convenções europeias".
O governo italiano já fez saber que o protocolo de cooperação com a Albânia não terá de ser aprovado pelo parlamento italiano, o mesmo sucedendo na Albânia, o que também motivou acesas críticas da oposição, no caso, de direita.