Julgamento por mortes no Canal da Mancha revela guerras territoriais entre traficantes

Travessias perigosas causaram a morte de pelo menos 27 pessoas desde o início do ano
Foto: Sameer Al-Doumy / AFP
O julgamento de nove pessoas pelo naufrágio no Canal da Mancha que vitimou sete afegãos em 2023, iniciado na semana passada, tem revelado "guerras territoriais" entre traficantes de migrantes ao longo da costa francesa, relataram esta sexta-feira as agências internacionais.
Entre os arguidos acusados de homicídio negligente, de colocar outras pessoas em perigo e de cumplicidade na entrada ilegal de migrantes, encontram-se dois curdos iraquianos suspeitos de serem os principais responsáveis pela tragédia.
De acordo com os juízes de instrução do tribunal de Paris, a rede que organiza as travessias para o Reino Unido, "comandada pela comunidade curda iraquiana", alimenta esta atividade com "violência, incluindo com armas".
Um dos dois curdos iraquianos acusados, um homem de 45 anos identificado como Idriss K., negou categoricamente qualquer envolvimento na organização da travessia.
O homem já cumpriu várias penas por tráfico de pessoas, num total de 11 anos de prisão, e, desde 2020, estava proibido de entrar em território francês durante um período de 10 anos.
"É verdade que noutra vida fui traficante. Mas fui condenado e parei", garantiu diante do tribunal, segundo relatou a agência de notícias France-Presse (AFP).
Indriss K. é, no entanto, acusado de ter mantido a atividade de tráfico e, com base em escutas telefónicas e rastreamento do seu carro de luxo - feitas pelas autoridades judiciais alemãs, que já investigavam as suas atividades muito antes do naufrágio ocorrido em 2023 -, é também tido como parte da alegada "guerra territorial" entre redes rivais de traficantes de migrantes nas praias da costa francesa.
Mensagens tramam traficantes
Entre as provas constam mensagens de telemóvel escritas entre alegados rivais. "Ontem estiveste no meu ponto de partida [dos migrantes]. Não voltes lá", escreveu, por exemplo, a um rival que lhe garantiu que não organizava estas travessias a partir da costa de Calais, mas sim a partir de Gravelines, outro ponto de partida no norte de França associado às travessias de migrantes.
"Se estive dentro das vossas fronteiras, peço desculpa", respondeu o rival de Indriss K., numa mensagem citada pela AFP. Uma conversa que levou o juiz-presidente do tribunal a afirmar que Indriss K. "considerava aquela praia como sua".
Numa troca de palavras com outro rival, acompanhada por uma enxurrada de insultos, Idriss K. ameaçou: "Estás a brincar. Ontem enviaste um bote Zodiac daqui [com dados de geolocalização]. Se os teus pilotos voltarem, dou-lhes um tiro na cabeça".
Numa outra conversa registada, o curdo falou ao seu amigo Tariq H., também presente no banco dos réus, de um rival iraniano com quem não queria partilhar as praias entre Calais e Dunquerque, portos do Canal da Mancha.
"Se resolvermos o problema com o iraniano, poderemos fazer o embarque duas ou três vezes por semana", disse.
Uns dias depois, enviou outra mensagem na qual afirmava: "Apanhei um iraniano, espanquei-o. Despi completamente o rapaz, fiz-lhe coisas terríveis".
Tariq H. também nega todas as acusações. O homem, também de 45 anos, garantiu em tribunal que estas frases não passavam de fanfarronices de Idriss K., que conheceu no Iraque quando este era "polícia".
No entanto, os métodos brutais utilizados para realizar travessias irregulares em pequenas embarcações, que aumentaram consideravelmente desde 2018, foram também confirmados no início do julgamento por um sobrevivente sudanês e alegado piloto da embarcação.
"Disseram-nos: "Vocês vão todos entrar, e quem não entrar, nós matamos". Eles tinham paus e armas", recordou Ibrahim A., de 31 anos, em lágrimas durante o testemunho em tribunal.
A testemunha, que disse ter tido a certeza de que o barco insuflável não aguentaria fazer a travessia, dado o seu estado, contou que, duas horas após a partida, na noite de 11 para 12 de agosto de 2023, a embarcação improvisada virou-se.
O naufrágio provocou sete mortos e deixou à deriva, nas águas do Canal da Mancha, cerca de 60 sobreviventes afegãos. O julgamento deverá durar até 18 de novembro.
Travessia ilegal aumentou na última década
A entrada ilegal no Reino Unido de migrantes que atravessam o Canal da Mancha em barcos frágeis que partem da costa de França tem vindo a aumentar na última década.
Desde o início deste ano, cerca de 37 mil pessoas entraram dessa forma no Reino Unido, o que supera o número registado em todo o ano de 2024, segundo dados do Ministério do Interior britânico.
Estes números, no entanto, continuam abaixo dos registados em 2022, quando 45.774 migrantes desembarcaram em terras britânicas, o número mais elevado desde o início do fenómeno em 2018.
O governo trabalhista do primeiro-ministro Keir Starmer está a tentar, até agora sem sucesso, reduzir o número de migrantes que atravessam o Canal da Mancha nestes pequenos barcos.
Londres e Paris concluíram, em julho, um acordo baseado no princípio de "um por um", através do qual França recebe migrantes que tenham chegado ao Reino Unido em "pequenos barcos" e cujos pedidos de asilo não sejam admissíveis.
Já Londres recebe pessoas localizadas em França que se tenham candidatado a migrar através de uma plataforma "online", dando prioridade às que têm ligações ao Reino Unido.
Estas travessias perigosas causaram a morte de pelo menos 27 pessoas desde o início do ano.
