Líder sul-americano chegou esta sexta-feira a Lisboa para uma viagem oficial de cinco dias ao país.
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A visita de Lula da Silva a Portugal é mais um capítulo na história do líder do Partido dos Trabalhadores (PT) com o país ibérico. O presidente brasileiro iniciou o terceiro mandato no Palácio do Planalto com a missão de trazer o Brasil "de volta" ao cenário internacional. Na bagagem, o chefe de Estado traz uma história de vida que ajuda a compreender melhor a sua atual visão pragmática e equilibrista, defensora de um mundo multipolar. Das origens humildes ao sindicalismo e à ascensão, por três vezes, à presidência, Lula e o próprio PT são sobreviventes num horizonte tão volátil quanto a política brasileira.
Origens, sindicalismo e PT
Luiz Inácio da Silva nasceu em 1945 numa região do estado de Pernambuco varrida pela fome, no coração do Nordeste. O sétimo de oito filhos de lavradores, que teve uma infância sem a presença do pai, mudou-se para São Paulo com a "Dona Lindu" e os irmãos, numa viagem de 13 dias num camião. Na metrópole do Sudeste, Luiz foi alfabetizado e começou a trabalhar como vendedor, entregador e engraxador ainda criança.
Já nos anos 60, o adolescente Luiz fez um curso profissional, o que permitiu que se tornasse torneiro mecânico no pulsante setor da metalurgia da região do ABC Paulista, berço da indústria automóvel brasileira. O trabalho em condições precárias transformou o jovem adulto, tanto politica quanto fisicamente - foi como metalúrgico que o futuro presidente do Brasil perdeu um dos dedos da mão. A alcunha "Lula", criada pelos colegas nesta época, seguiu-o na carreira sindical.
Em plena ditadura militar, teve uma rápida ascensão no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, chegando à presidência em 1978. Lula liderou diversas greves operárias, após 10 anos sem paralisações, com a adesão de mais de uma centena de milhar de trabalhadores. Devido à Lei de Segurança Nacional, chegou a ser preso pelo Governo federal, em 1980, por 31 dias - seis em greve de fome.
Ainda em 1980, Luiz fundou o Partido dos Trabalhadores junto de outros sindicalistas, intelectuais, artistas, membros da Igreja católica e ativistas rurais. Em 1982, para concorrer ao Governo do estado de São Paulo com a já famosa alcunha "Lula", o líder da "estrela vermelha" teve de mudar o nome oficialmente, transformando-se em Luiz Inácio Lula da Silva.
O caminho para o Planalto
Apesar das derrotas políticas na primeira metade dos anos 80, o "petista" tornou-se o deputado federal mais votado da história do Brasil, em 1986, sendo um dos congressistas que participou na elaboração da chamada Constituição Cidadã de 1988. Lula começou a disputar a presidência a partir do regresso das eleições democráticas diretas, depois de uma espera de 29 anos. Ficou em segundo lugar nas disputas de 1989, 1994 e 1998, finalmente tendo êxito em 2002, quando se apresentou como um político moderado, o "Lulinha Paz e Amor".
Os dois primeiros mandatos no Palácio do Planalto foram marcados por avanços sociais e ambientais: a criação do programa de transferência de rendimento Bolsa Família e o combate ao desmatamento na Amazónia, revertendo uma tendência de alta, observada entre 2002 e 2004. Os anos iniciais de Lula na presidência foram também estremecidos pelo escândalo de corrupção "Mensalão", que levou à queda de membros históricos do PT, condenados por terem participado num esquema de suborno mensal para a compra de votos da base aliada no Congresso.
Lula, que conseguiu sobreviver politicamente, teve dois mandatos com grande foco no internacional, tendo visitado seis vezes o "grande companheiro" Portugal, como definiu o presidente brasileiro em Lisboa, em julho de 2003. O chefe de Estado do gigante sul-americano, que implementou em 2009 o Acordo Ortográfico de 1990 no Brasil, deu prioridade às relações bilaterais entre os membros da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), principalmente na área cultural.
A diplomacia de Lula privilegiou o Sul Global, como a América Latina e, a partir de 2009, um grupo de países com economias emergentes que se apresentava como tijolos para a construção de uma nova ordem mundial, multipolar: os BRIC, composto por Brasil, Rússia, Índia e China. Em 2011, já no Governo Dilma Rousseff, a África do Sul veio adicionar o plural ao grupo, acrescentando o "S" de "South Africa" no acrónimo.
Lava Jato e prisão
Após oito anos na presidência, Lula deixou o Planalto com popularidade recorde, horizonte que seria alterado nos anos seguintes. Ainda em 2011, o agora ex-chefe de Estado descobriu um cancro na laringe, tumor considerado "ausente" em 2012, depois de um ano de tratamento. A luta pela saúde seria apenas o primeiro desafio do petista na nova década que se iniciava.
A Operação Lava Jato começou em 2014, com uma investigação a um caso de branqueamento de capitais num posto de combustíveis em Brasília que acabou por evoluir na apuração de um grande esquema de corrupção que envolvia empresas de construção e a gigante estatal Petrobras. O escândalo contribuiu para o crescimento do "antipetismo" e a perda de popularidade e do capital político da sucessora de Lula, Dilma Rousseff, que foi impedida de governar pelo Congresso Nacional, em 2016.
Apesar da perspetiva desafiadora, o líder petista planeava uma candidatura presidencial para 2018. Porém, ainda em 2016, Lula foi acusado pelo Ministério Público de ter recebido suborno de uma construtora, o que incluía um apartamento tríplex no litoral do estado de São Paulo, em troca de favorecimento nos contratos da Petrobras. Foi condenado na primeira e na segunda instâncias da Justiça federal, em 2017 e 2018.
Foi detido a 7 de abril de 2018 no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, onde tinha dado os primeiros passos políticos, após o Supremo Tribunal Federal rejeitar o pedido da defesa de Lula por um 'habeas corpus' preventivo, já que os recursos não estavam ainda esgotados. Os advogados de Lula alegavam que não foi feita uma prova pericial nos documentos do apartamento e que foram cerceados pela Justiça federal. O juiz Sergio Moro sustentava a ideia de que Lula terá ocultado a propriedade do tríplex.
Com a aproximação das eleições presidenciais, em outubro de 2018, o Partido dos Trabalhadores insistiu na inocência do seu líder, o que fez com que, inicialmente, Lula fosse o candidato petista. Sem a libertação, o PT trocou no limite do prazo imposto pelo Tribunal Superior Eleitoral o nome do favorito das sondagens pelo de Fernando Haddad, ex-autarca de São Paulo. Uma campanha eleitoral e uma facada depois, Jair Bolsonaro foi eleito e, para o Ministério da Justiça, escolheu o juiz-celebridade Moro, responsável pela prisão do principal adversário político.
Libertação e regresso
Em novembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou a prisão em segunda instância inconstitucional e, após 580 dias preso na sede da Polícia Federal em Curitiba, Lula foi libertado. Neste tempo detido, além de não ter tido a hipótese de concorrer à presidência, o petista perdeu um irmão e um neto de sete anos.
Em 2021, as condenações foram anuladas pelo STF devido à falta de competência jurisdicional da Justiça Federal do Paraná. O juiz Sergio Moro, que terá colaborado com os procuradores, foi considerado suspeito, ou seja, que não conduziu um julgamento imparcial. O caso, anulado no final de 2021, foi condenado pela Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, que disse que Lula teve os direitos políticos violados.
Lula nunca deixou de lado o projeto de regresso ao Palácio do Planalto, exemplificado numa frase dita ainda em 2016: "A partir de agora, se me prenderem, eu viro herói. Se me matarem, viro mártir. E se me deixarem solto, viro presidente de novo". O petista fez, nos meses seguintes, diversas viagens no Brasil para tentar reconquistar os eleitores mais desconfiados.
Num cenário dominado pelo extremismo, o embate entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Messias Bolsonaro finalmente pôde acontecer nas urnas eletrónicas, em outubro de 2022. Apesar da esperança de uma vitória na primeira volta, o candidato do PT reconquistou o Planalto pela terceira vez, sendo a disputa presidencial mais apertada desde a redemocratização, em 1985. Para trás, ficou um chefe de Estado de extrema-direita que foi o primeiro a falhar uma reeleição.
Terceiro mandato e Ucrânia
As dúvidas sobre quem entregaria a faixa presidencial foram sanadas naquele 1 de janeiro de 2023, quando minorias da sociedade civil brasileira passaram o símbolo da presidência a Lula. Já o ausente Bolsonaro, agora ex-presidente, passou três meses na Florida, nos Estados Unidos.
O clima de otimismo na Esquerda não escondia a preocupação com a segurança, já que bolsonaristas continuavam acampados à frente dos quartéis a pedir intervenção militar. Isto veio a culminar, a 8 de janeiro, na invasão das sedes dos Três Poderes, em Brasília, em que construções históricas desenhadas por Oscar Niemeyer foram vandalizadas pelos "verde-amarelos".
Os problemas internos não ofuscaram o foco internacional de Lula, que, com o lema de "o Brasil voltou", começou a trazer o gigante sul-americano de volta para o cenário geopolítico global. O chefe de Estado já realizou visitas à Argentina, ao Uruguai - ambos do bloco do Mercosul -, aos Estados Unidos, à China - maior parceiro comercial brasileiro - e aos Emirados Árabes Unidos. Agora é a vez de Portugal, cuja delegação foi a primeira a cumprimentar Lula da Silva após a posse de 1 de janeiro, no Palácio do Itamaraty, em Brasília.
Apesar de insistir na criação de um grupo de países "neutros" para a discussão da paz na Ucrânia, as últimas declarações do presidente do Brasil tiveram repercussão negativa nos parceiros ocidentais. Após dizer que EUA e Europa incentivam a continuidade da guerra, o equilibrista Lula disse condenar a "violação da integridade territorial" da Ucrânia. Em Portugal, o assunto não deverá ser prioridade do chefe de Estado brasileiro, que estará com o foco nos acordos bilaterais relacionados com a imigração e a economia.