22 crianças da Gronelândia foram levadas para a Dinamarca em 1951 numa "experiência social". O objetivo? Criar "um modelo modernizado" de gronelandeses para acelerar o desenvolvimento da região. Resultado final? Crianças marginalizadas, perdidas e abandonadas. A indemnização e o pedido de desculpas só chegaram agora, 71 anos depois.
Corpo do artigo
No século XX, grande parte da população da Gronelândia ganhava a vida na pesca, poucas falavam dinamarquês e a tuberculose estava espalhada pela ilha. Nesta altura, o território era uma colónia da Dinamarca e a intervenção da metrópole consistiu numa "experiência social" nunca antes vista.
22 crianças inuítes - indígenas que habitam nas regiões árticas do Canadá, Alasca e Gronelândia - foram enviadas para a Dinamarca para aprenderem a língua, conhecerem uma nova realidade e serem reeducados como "pequenos dinamarqueses". O plano era criar "modelos" gronelandeses que iriam acelerar o desenvolvimento da região. Mas isso nunca aconteceu, pelo contrário.
16 crianças regressaram a casa um ano e meio depois, mas já tinham perdido a língua materna e não conseguiam comunicar com as famílias. Acabaram por ir viver para um orfanato, sem perceber o que lhes estava a acontecer.
A "experiência" feita em segredo, para os gronelandeses, foi descoberta em 1998 e desde então que os lesados exigem justiça. Confrontado com uma ação judicial, o governo dinamarquês decidiu indemnizar os seis sobreviventes, na semana passada, com cerca de 34 mil euros e com um pedido de desculpas. As outras 16 pessoas já faleceram.
"O que vos foi feito foi terrível, foi desumano, injusto e sem coração", confessou a primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, numa cerimónia em Copenhaga, onde recebeu as seis pessoas que fizeram parte do projeto.
"Devíamos ser a elite"
Kristine Heinesen, de 76 anos, lembra-se vivamente do dia em que foi levada, com apenas cinco anos de idade. Confessa que no início estava entusiasmada com o facto de sair da ilha e andar de barco, mas à medida que a viagem se prolongava no tempo "tornou-se claro que não ia voltar", revelou à BBC.
Assim que as crianças, com idades entre os quatro e os nove anos, chegaram à Dinamarca foram colocadas num lar de acolhimento e só depois foram viver com pais adotivos. Os menores chegaram inclusive a ser visitados pela Rainha da Dinamarca, tal era o prestígio do projeto e a "boa vontade" do governo dinamarquês.
No ano seguinte, 16 menores regressaram à Gronelândia, enquanto seis acabaram por ser adotados pelas famílias de acolhimento.
"Quando o navio atracou em Nuuk [capital da Gronelândia] peguei na minha mala e corri até aos braços da minha mãe", relembra Helene Thiesen, com 78 anos. "Falei de tudo o que tinha visto. Mas ela não respondeu. Eu olhei para ela confusa. Passado algum tempo, ela disse algo, mas eu não percebia o que ela dizia. Nem uma palavra. E foi aí que pensei: Isto é horrível. Já não consigo falar com a minha mãe porque falamos duas línguas diferentes", continua. Helene nunca conseguiu reconstruir a relação com a progenitora.
Entretanto, a Cruz Vermelha Dinamarquesa tinha construído um lar para as crianças na cidade, porque após a estadia em casas dinamarquesas abastadas, os menores não deveriam voltar a viver com as famílias em "más condições". Além disso, eram desencorajadas a falar a língua materna.
"Não nos era permitido brincar com crianças da Gronelândia, nem falar gronelandês. Devíamos ser a elite", disse Heinesen. Mas, incapazes de falar o idioma local, acabaram marginalizados na própria pátria.
"Tive saudades da minha família, da língua e da cultura. Eu não tive nada disso durante a minha infância", lamenta Kristine Heinesen à BBC.
Gabriel Schmidt, com 77 anos, foi para a Dinamarca quando tinha seis. "Lembro-me de quando a diretora [do orfanato] me disse: 'Hoje vamos ver o teu pai'. Eu perguntei: 'Tenho um pai?'". O homem recorda o reencontro com tristeza e mágoa.
Caminharam juntos, mas não conseguiam comunicar. "Ele falou em gronelandês, eu não compreendi e respondi-lhe em dinamarquês. Foi muito triste", lembra.
Um relatório de 2020, pedido pelo antigo governo da Dinamarca, descobriu que metade das crianças sofreu, mais tarde, com problemas de saúde mental ou abuso de álcool. A maioria morreu relativamente cedo e uma delas cometeu suicídio.
"Elas perderam a identidade", disse Einar Lund Jensen, um dos co-autores do relatório à BBC. As crianças acabaram por se transformar em pessoas sem raízes e marginalizadas.
Mudaram para sempre
A experiência era largamente desconhecida até à publicação em 1998 de um livro "I den Bedste Mening (Na Melhor das Intenções)" da assistente social dinamarquesa Tine Bryld. E foi assim que alguns descobriram porque saíram abruptamente da Gronelândia.
"Todos nós sentíamos que isto estava errado. Tínhamos uma sensação de perda e essas emoções não desapareceram", admite Helene Thiesen.
"Foi uma clara violação dos direitos fundamentais das crianças. Não há praticamente nenhuma regra que não tenha sido violada", disse Mimi Jacobsen, secretária-geral da Save the Children da Dinamarca, organização diretamente envolvida no projeto, à BBC.
As crianças deveriam ser órfãs, mas não era o caso da maioria. Na verdade, há dúvidas se os pais compreendiam as implicações do acordo e o que estavam a fazer, aliás crê-se que muitos foram seduzidos com a ideia de um futuro melhor para os filhos.
Hoje em dia a Gronelândia é um território autónomo, dentro do reino da Dinamarca. Contudo esta "experiência" deixou marcas difíceis de ignorar.
A ministra dos Assuntos Sociais e dos Idosos da Dinamarca, Astrid Krag, afirmou: "A mudança das crianças para a Dinamarca é um capítulo negro da história comum da Gronelândia e da Dinamarca - e é um capítulo para o qual não devemos fechar os olhos".
Vários governos dinamarqueses tentaram distanciar-se deste projeto e ilibar-se de qualquer responsabilidade. Os pedidos de desculpas foram recusados várias vezes até 2020, quando a primeira-ministra do país enviou um pedido de desculpas aos seis sobreviventes ainda vivos. A indemnização foi aprovada na semana passada, altura em que houve uma cerimónia onde o governo dinamarquês pediu desculpas, cara a cara, a todos os sobreviventes da experiência.