Mikhail Gorbachev parte entre as mesmas grandes clivagens que ajudou a derrubar. Funeral do mentor da "Glasnost" e da "Perestroika" marcado para sábado, em Moscovo.
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No mesmo dia, ontem, em que os peritos da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), chegaram a Zaporíjia para a inspeção da maior central nuclear da Europa, localizada no Sul da Ucrânia, em território ocupado pela Rússia, o cenário de conflito relembra todas as semelhanças com os mesmos riscos de catástrofe e terror que ameaçaram o mundo nas décadas de 1980 e 1990, até à intervenção do estadista russo que proporcionou o degelo com o Ocidente. Foi essa a maior façanha de Mikhail Gorbachev, falecido anteontem, aos 91 anos, mas agora despedido na retoma das clivagens que ajudou a derrubar e no troar dos canhões na Ucrânia.
Uma ronda pela imprensa internacional revela os antagonismos suscitados pela morte do último presidente da União Soviética. Um anjo, para o Ocidente, um demónio, para algumas ex-repúblicas soviéticas. As reações à morte de Gorbachev começaram com os despachos de agências, factuais e neutros, mas logo se aprofundaram em resenhas históricas elogiosas ou menos simpáticas para o mentor da "Glasnost" (abertura) e da "Perestroika" (reconstrução).
A Leste, os países bálticos, a Estónia, a Letónia e a Lituânia - proclamados independentes em 1990 e hoje membros da NATO -, recordam a invasão militar russa de 1991. O jornal letão "Latvijas Avize" relembra que o dirigente do "império do mal" ficou "com sangue nas mãos".
Na Rússia, as notícias sobre a morte de Gorbachev foram pouco menos que lacónicas. A declaração mais veemente foi produzida na agência RIA Novosti: "Há uma espécie de simbolismo sobrenatural para que em 2022 morram diversos estadistas envolvidos no desmantelamento da URSS", escreve a cronista Irina Alksinis, também a referir-se, entre outros, a Gennady Burbulis, antigo vice-presidente da Rússia, e aos ex-presidentes Stanislaw Chouchkievitch, da Bielorrússia, e Leonid Kravchuk, da Ucrânia, todos signatários dos acordos de Minsk de 1991, que dissolveram a URSS e criaram a Comunidade de Estados Independentes.
Na própria Ucrânia, o desaparecimento do Prémio Nobel da Paz (1990) resume-se em poucas linhas. O jornal digital "Ukrayinska Pravda" publica despachos de agência e dados biográficos e o "Svoboda" observa que o histórico estadista russo ficou mudo, desde fevereiro até à sua morte, sobre a invasão da Ucrânia. E se, em Kiev, concedem que foi muito crítico de Putin, nos anos 2000, também observam que apoiou a anexação da Crimeia, em 2014, e que desde então se reaproximou ao presidente russo.
"Profunda tristeza"
Em Moscovo, o Kremlin produziu uma declaração vaga e formal, emanada de um gabinete e divulgada pela agência Interfax: "Putin expressa a sua profunda tristeza pela morte de Gorbachev. Pela manhã irá enviar um telegrama de condolências aos seus familiares e amigos".
A Ocidente, exalta-se "o anjo da paz que ajudou a acabar com a corrida aos armamentos", como o recorda o "Frankfurter Allgemeine Zeitung", no elogio fúnebre de "um dos pais da reunificação da Alemanha".
"Gorbi", como foi e é mais intimamente tratado no mundo ocidental, é por aqui bem mais distinguido, com um lugar de destaque na História do último quartel do século XX. O "The New York Times" dá o exemplo: "Poucos dirigentes e mesmo dos séculos precedentes tiveram um impacto tão profundo na sua época. Em pouco mais de seis anos tumultuosos, Gorbachev fechou a Cortina de Ferro, transformando de forma decisiva o clima político mundial".
Honras de estado
É de toda esta figura incontornável da história contemporânea que se preparam as exéquias. O funeral está marcado para sábado, em Moscovo, terá as devidas honras de Estado e, muito provavelmente, a presença de estadistas internacionais. Problema, sobretudo para a Europa: além das restrições em curso, em retaliação pela invasão à Ucrânia, como poderão obter visas e fazer-se representar nas cerimónias os 27 membros da UE que querem reduzir o acesso dos turistas russos ao espaço Schengen?
Relação de amor e ódio
Mikhail Gorbachev teve uma relação ambivalente com Vladimir Putin durante os mais de 20 anos que o presidente russo leva no poder.
Apoiou algumas iniciativas, mas também participou na oposição contra o chefe de Estado. Quando Putin chegou ao poder, "Gorbi" disse que tinha um bom perfil para ser presidente, mas em 2011 afirmou que sentia vergonha de tê-lo apoiado e, um ano depois, criticou-lhe a "suscetibilidade e o rancor".