Deitado de barriga para cima na cama ao lado da mãe, embrulhado numa capulana, o retalho de pano que é património cultural de Moçambique, em tons de camaleão castanho, o pequenino já abriu os olhos e meneia agora as mãozinhas que abrem e fecham sem sentido a agarrar o ar.
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Está muito sossegado, quase não chorou, sorri a golfar o ar e a mãe não despega os olhos dele. Vai chamar-se David como o guerreiro destemido, homem de família apaixonado, fiel seguidor de Deus. "Será David, uma homenagem ao rei (de Israel)", diz a mãe Rosália, 32 anos, que bamboleia as pernas na borda da cama a dizer que está com "um bocadinho de tonturas" e que se sente "bastante feliz mas cansada". É para estar: não passaram sequer duas horas desde que deu à luz a criança, o seu segundo filho, segunda-feira ao final da manhã, na maternidade de Macurungo, a zona dos mais populosos e mais pobres bairros da Beira, Moçambique.
Os efeitos do Idai, o ciclone que no dia 14 de março corrupiou farto de som e de fúria e deixou cheia de chagas a terra do centro da ex-colónia portuguesa da África oriental, estão por todo o lado e são muito evidentes ali: casas destelhadas, embondeiros arriados de raiz arrancada, postes elétricos tombados, as lojas-barracas de chapa muito tortas, ruas e estradas zumbadas cheias de pó e a pretidão que cai com a noite às 6 da tarde e deixa muitas artérias na obscuração. O quadro de morte e doença, sobretudo nas doenças de transmissão hídrica, como a cólera, continua a enegrecer: são já mais de meio milhar os mortos e ontem deu-se o primeiro falecimento provocado por aquela doença infecciosa epidémica que continua a assustar o país.
"O melhor para Moçambique"
Mas Moçambique, que tem um lema de orgulho popular patriótico que levanta por estes dias contradições ("Eu não escolhi nascer moçambicano, só tive sorte"), começa a erguer-se do chão e nada trava os seus nascimentos: são esperados 45 mil partos para as próximas semanas, muitos são antecipados devido aos efeitos de stress e trauma da catástrofe. Com os olhos nesse horizonte, a Cruz Vermelha Portuguesa fez cá chegar ontem o 2º avião de carga solidária, agora especialmente dirigido à saúde materno-infantil: o Boeing 767 transportou 33 toneladas de equipamentos, incluindo uma maternidade completa com marquesas, ecógrafos e 1,5 toneladas de kits de parto.
"É o melhor material que temos e é para servir Moçambique", disse com orgulho o intrépido e omnipresente Francisco George, que dirige a Cruz Vermelha e na segunda-feira visitou a Beira durante 16 horas, tendo regressado a Lisboa esta terça-feira. O presidente deu uma bela notícia à sua congénere de cá: as oito tendas-hospital montadas desde a semana passada serão oferecidas aos moçambicanos, assim como boa parte dos 1,7 milhões de euros doados pelos portugueses, que servirão para reconstruir a maternidade, que vivia muito desvalida já antes do Idai.
"Vamos cá manter equipas até ao final do ano, pelo menos", disse Francisco George ao JN, "depois o material fica para eles", repetiu com satisfação. Mas antes George baixou os olhos depois de ver o que o circunda: o pobre Centro de Saúde de Macurungo, desequipado, desnudado, com as janelas rebentadas e as suas paredes quentes metido num descampado entre lixos e desperdícios que grassam no capim e umas galinhas esguias que passam ali o dia a debicar estonteadas ao sol.
"É um passo gigantesco que humildemente agradecemos de coração", disse Avelino Isaías, presidente da Cruz Vermelha de Moçambique, sobre o equipamento doado. "Agora, com a ajuda de todos, só temos de nos levantar e olhar positivamente para a frente. É isso que vamos fazer".
É isso que faz Rosália, que vive no Mataquane e ontem já contava dormir em casa com o seu rei recém-nascido. Ela sorri depois de acrescentar: "Ainda bem que ele quis esperar um bocadinho antes de vir ao nosso mundo. Já viu o que era se ele nascia no dia do ciclone?", e a mãe crava e não mais desgruda os olhos do seu querido bebé.
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