Mykolaiv, uma cidade sem vidros. "As torneiras têm água, mas não a podemos beber"
Quando, em 1892, o czar Alexandre III mandou construir uma escola secundária para as filhas das elites de Mykolaiv, estaria longe de imaginar que o edifício acabaria destruído às ordens do Kremlin. Mas foi isso que aconteceu a 1 de novembro do ano passado. Um míssil S-300 atingiu o edifício, considerado uma das obras de arte da arquitetura do império russo, num dos últimos ataques contra a cidade. Uma semana depois, as forças ucranianas reconquistaram Kherson.
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A Escola Mykola Arkas (compositor, escritor e autor de uma História da Ucrânia, livro publicado no início do século XX) é só um entre muitos. Depois de vários meses a ser bombardeada pelas forças russas, as marcas estão à vista: dezenas de edifícios destruídos, milhares de prédios danificados. Mykolayiv é uma cidade quase sem janelas.
Mas, desde que o exército ucraniano obrigou as tropas do Kremlin a recuar para a margem direita do rio Dnieper, as sirenes deixaram de marcar o compasso da cidade, a vida começou a regressar. Pouco a pouco, o comércio vai reabrindo e muitos dos que estavam fora regressam agora a casa.
É o caso de Svetlana Voropanova. Passou os últimos meses a 90 quilómetros de Mykolaiv, "na direção de Odessa, mas longe de Kherson", explica. Regressou há duas semanas, depois de seis meses fora de casa. Quando estávamos a entrar na cidade, as sirenes começaram a tocar de novo, mas Svetlana e o marido não se assustam: "Somos de Lugansk , fugimos de lá em 2014. Foi nisto que a nossa vida se transformou. E agora aqui está ela [a guerra] novamente. Mas já não há para onde fugir. Por isso vamos ficar por aqui." A mulher, de 46 anos, explica que "agora a situação é perigosa em todo o país.
Desde que a família regressou a Mykolayiv, o filho, de 14 anos, regressou às aulas. "É claro que ele está preocupado, mas tenta viver uma vida normal." A mãe explica que as marcas da guerra ainda não são visíveis no filho adolescente. "Vou dizer-lhe uma coisa, ele não reage de perto a este stress. Ele entende tudo mas é fechado em si mesmo. Não mostra emoções. Talvez nalgum lugar lá dentro."
As lojas têm produtos nas prateleiras, vamos tendo eletricidade, as torneiras têm água, mas não a podemos beber. É só para os banhos e assim
Uma vida normal é o que Svetlana tenta manter. "As lojas têm produtos nas prateleiras, vamos tendo eletricidade, as torneiras têm água, mas não a podemos beber. É só para os banhos e assim." Por isso mesmo, por toda a cidade, continua a haver pontos de distribuição gratuita de água potável. "Mas quem quiser também pode comprar, calmamente, no supermercado", acrescenta a mulher, de 46 anos. O que não é o caso dela.
Encontrámos Svetlana enquanto enchia garrafões de água para beber e cozinhar. A água é mesmo o grande problema da cidade neste momento, explica Vitaly Tsaregorodtse. "É salgada. Está tudo estragado: canalizações, caldeiras. Temos de trocar as torneiras todos os meses. O sal "come" os plásticos elásticos e as juntas de borracha." O homem lamenta os custos: "Se antes uma caldeira de 50 litros custava 2 mil hryvnias (51€), agora custa 7 mil (179€). As torneiras 1,5 mil (38€) cada. É muito dinheiro."
Com os filhos refugiados na Polónia, a vida de Vitaly e da mulher é rotineira, mas o homem, de 38 anos, não se lamenta. "Há muita gente que nem trabalho tem."
Um prédio junto à casa de Vitaliy foi o último alvo das forças russas, em Mykolaiv, antes de Kherson ser libertada. "Não consigo descrever com grande detalhe. Houve quatro explosões, acordei e sentei-me no corredor. Tudo em minha casa voava, caía. Foi assustador, mas o que é podemos fazer?" Desde então, a vida na cidade é mais calma.
Enquanto conversamos, ouvem-se, ao longe, tiros de artilharia. Vitaly alegra-se: "É um bom sinal." Garante que vêm de um campo de treino das forças ucranianas nos arredores da cidade.
De acordo com os dados das autoridades ucranianas, desde o início da guerra, em Mykolaiv, os bombardeamentos russos já mataram quase 250 civis e deixaram mais de 500 feridos.