Nadia Murad Prémio Nobel da Paz de 2018, a jovem Yazidi fugiu do "Estado Islâmico" e de um Iraque desfeito.
Corpo do artigo
Tinha apenas 21 anos quando, no verão de 2014, os soldados do "Estado Islâmico" (EI) atacaram a aldeia onde vivia, no norte do Iraque. Foi vendida como escrava sexual. Violada. Torturada. Destruíram-lhe o corpo e os sonhos de criança. Nadia Murad conseguiu fugir e denunciou as atrocidades cometidas sobre o povo Yazidi. Está tudo no livro "Eu serei a última", publicado em Portugal pela Editora Objetiva.
As marcas ficam para sempre. Como a memória da família, morta às mãos dos terroristas. Agora, quer aproveitar a projeção do Prémio Nobel da Paz, que recebeu em dezembro, e o lançamento da "Iniciativa Nadia" para mudar consciências. Ao JN, diz que acredita num Mundo sem violência sexual e condena as palavras sem ação, comparando-as aos ataques que sofreu enquanto esteve sequestrada. Subiu do inferno à terra e agora quer ser ouvida.
Como era a vida antes do EI?
Eu era uma típica rapariga do campo. Ia para a escola e depois ajudava os meus pais. Tínhamos uma grande família. A vida não era fácil, mas éramos todos felizes. Estava longe de entender os horrores indescritíveis que as pessoas podiam fazer umas às outras.
Nunca imaginou no que se tornaria a sua vida...
Desconhecia totalmente o que era o EI. Não imaginava o impacto deles em mim, na minha família e em toda a nossa comunidade.
Quais eram os sonhos de uma jovem a viver no Iraque?
Queria acabar o Ensino Secundário e abrir o meu salão de cabeleireira profissional. Adorava ver as noivas a preparar-se para os casamentos. Ficava quieta no meu canto a ver cada passo do processo, memorizando como a maquilhagem era aplicada. Sonhava que um dia ia casar e morar em Kocho com a minha própria família.
De repente tudo mudou.
O EI atacou ferozmente o distrito de Sinjar em agosto de 2014, com a intenção de erradicar todo os Yazidis do Iraque. As pessoas perguntam-me com regularidade se me lembro do dia em que nos atacaram. Nunca o esquecerei. Foi o dia que mudou minha vida para sempre. Não foi só o meu mundo que ruiu. Foi a vida de toda uma comunidade. Eles acreditavam que os Yazidis eram sub-humanos. Acreditavam verdadeiramente que éramos o pior tipo de não crentes, cujas mulheres poderiam ser escravizadas.
Foram o principal alvo?
Foram distribuídas diretrizes detalhando aquilo que os combatentes do EI podiam fazer com a Sabaya - as suas escravas sexuais. Foi criado um comité para a compra e venda de escravas sexuais. Meninas com apenas nove anos, que tinham uma vida normal, brincando no campo, de repente, sem aviso prévio, perderam a inocência. Foram violadas até os corpos ficarem danificados para sempre e os seus espíritos despedaçados.
É por elas que luta agora?
A maioria da minha família morreu e não posso mudar isso. Nada vai trazer de volta a minha mãe e os meus seis irmãos. Sou uma das jovens sortudas que conseguiram escapar. Sinto uma profunda responsabilidade em ser uma voz ativa por todas as vítimas esquecidas e sem nome, que sofreram com os horrores da violência sexual e do genocídio.
Os líderes internacionais preocuparam-se com os Yazidis?
O EI usou uma tática comum de genocídio, que já foi usada com outros povos. É difícil compreender como é que o mundo assistiu a um genocídio que aconteceu em tempo real sem nada fazer. Ninguém se importava com o que acontecia. E palavras sem ação são como ataques sexuais".
Terão morrido ou desaparecido mais de dez mil pessoas da sua comunidade. Mais de quatro anos depois, ainda vai a tempo de mudar o que aconteceu?
A mim compete-me defender a mudança. Foi por isso que criei a "Iniciativa Nadia". Para desafiar os líderes mundiais a assumirem uma maior responsabilidade. Palavras sem ação são como os ataques sexuais. São negligências benignas e infligem o mesmo dano e sofrimento do que os predadores.
E em que pode ajudar o Prémio Nobel que venceu?
Estamos a trabalhar agora em Sinjar, com um programa direcionado à reconstrução da região. Lancei essa iniciativa doando a totalidade do dinheiro que recebi com o Prémio Nobel. Espero que consiga alcançar o compromisso global de trazer justiça à região e restaurar os lares, a vida e a dignidade daqueles que sofreram horrores nas mãos do EI.
Que tipo de apoio já recebeu?
Vários governos já se comprometeram com o envio de fundos e estou incrivelmente grata. Mas as necessidades para a reconstrução da região destruída pelo EI são imensas. O Mundo deve coletivamente reconhecer o imperativo moral de ajudar não só a comunidade Yazidi como todas as vítimas de violência sexual.
Como olha o futuro?
Eu acredito num Mundo sem genocídios e violência sexual. A "Iniciativa Nadia" deseja um mundo onde a humanidade é a prioridade e todos os seres humanos têm a mesma liberdade e podem viver longe da perseguição. Precisamos de apoiar todos os esforços que nos ajudem a fortalecer valores como o humanismo e superar as divisões culturais e políticas.