Vladimir Putin e Volodimir Zelensky têm 25 anos de diferença e um futuro incerto: o russo aposta na violência e na tirania, o ucraniano na resistência e na democracia.
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Vladimir Putin tinha 23 anos e já uma existência opaca. Em 1975, quando se fez espião do KGB, antiga polícia secreta do regime comunista, o atual inimigo, Volodimir Zelensky, ainda não era nascido. A Rússia já era a Rússia, superpotência em território e recursos, coração da União Soviética. A Ucrânia ainda não era a Ucrânia, soberania suadamente reconquistada em 1991. Em 2022, de um lado prevalece o poder absoluto; do outro, a absoluta tragédia.
Entre os dois líderes, o invasor e o oprimido, há 25 anos de distância, uma licenciatura em Direito em comum e uma procissão política de contrastes: Putin, 69 anos de vida e 22 de poder, alterou a Constituição no ano passado para se eternizar na presidência russa pelo menos até 2036. Zelensky, 44 anos e três de liderança política sem experiência partidária, assegurou, ainda antes de ganhar as presidenciais ucranianas de 2019, que não disputará um segundo mandato. Em plena invasão à Ucrânia, declarada a 24 de fevereiro pela Rússia, com sucessivas violações e acumulados crimes de guerra, Putin reúne-se com os conselheiros no faustoso Kremlin à cabeceira de uma mesa de extensão caricatural, robustecendo a distância; Zelensky, olheiras e cansaço a incharem na proporção das tentativas de homicídio a que sobreviveu na última semana, partilha o pão e o chão de um bunker de Kiev com os assessores, cultivando a proximidade. "Ninguém está aqui por acaso", escreveu aos jornalistas o seu chefe de gabinete, Andriy Yermal.
Por razões diferentes, nos últimos tempos nenhum deles foi levado a sério: o primeiro, como admitiu esta semana Durão Barroso ao "Expresso", porque "tentar destruir ou fazer desaparecer como país independente um estado soberano ultrapassa toda a imaginação"; o segundo, porque transformou a ficção em realidade ao criar um partido com o nome e a equipa de uma série de humor, assumindo na vida real o papel do protagonista que desempenhara na sitcom: um professor de História do Ensino Secundário é filmado por um aluno a discursar contra a corrupção. O vídeo é colocado no YouTube, torna-se viral e vira o jogo, o professor torna-se presidente. "O servo do povo", assim se chama a série, foi exibida na televisão entre 2015 e 2019, estreou na Netflix na última semana de campanha de Zelensky. "Ninguém consegue competir com isto", ironizou. Acabaria mesmo eleito com mais de 70% dos votos.
O resultado da incredulidade mundial nestes dois homens, e da surpresa de Putin ao descobrir que Zelensky é, nas suas próprias palavras, "um osso duro de roer", é uma guerra que coloca um trágico ponto final nas oito décadas de paz a que por uma vez a Europa se habituara. Uma guerra que poderá desencadear mais de dez milhões de refugiados e que inevitavelmente provocará miséria e mortos aos milhares. Uma guerra da qual só um líder poderá sair de pé, física e metaforicamente. Daquele que vier a ser o vencedor dependerá não apenas o futuro na Ucrânia, país com 40 milhões de pessoas, mas também o seguro de todos os europeus. E do Mundo.
O complexo do homem baixo
Putin, que nasceu e cresceu em São Petersburgo, é homem de baixa estatura. Colocado em linha reta numa régua, o corpo do presidente russo não chega aos 1,70 metros. A pequenez física trai a virilidade do peito musculado que exibe com garbo nas férias e ter-lhe-á toldado, desde cedo, o raciocínio. A teoria é do escritor Jonathan Littel, que por estes dias escrevia no "The Guardian": "Crescer na Leninegrado do pós-guerra deve ter sido difícil para ele. Isso ensinou-lhe uma lição: se és o rapaz mais pequeno, bate primeiro, bate com força e depois continua a bater. Os rapazes maiores vão aprender a ter medo de ti e acabarão por recuar".
O autor de "As Benevolentes" , um tratado sobre a Alemanha nazi, referia-se ao sangue e saque com que o presidente russo, caçador e mestre em artes marciais, foi manchando as mãos nas últimas duas décadas - Chechénia, Geórgia, Crimeia, Síria, Líbia, Ucrânia - diante de uma Europa impávida e de uma acovardada América, cujas ameaças e sanções nunca foram suficientemente intimidatórias para travar o desejo insano e imperialista do homem que ao fim de 16 anos trocou os serviços secretos pela política, dando gás ao ódio pelo Ocidente.
A cruzada do autocrata Putin começou em agosto de 1999, quando um alcoólico e desistido Boris Ieltsin assumiu o fracasso de quase tudo o que fez e assinou a carta de renúncia, entregando de bandeja o Governo a um sujeito vagamente desconhecido. Até 2012, Putin foi intercalando entre ser primeiro-ministro e presidente. Com ele, o desemprego e a pobreza caíram, a economia, a natalidade e a estabilidade cresceram. Mas, também ali, o preço é a liberdade. Jornalistas e opositores são tranquilamente aniquilados. Ativistas LGBT são proibidos por lei. "Relações não tradicionais", também. Em 2013, desfez o casamento de 30 anos com a linguista Lyudmila Putina. Tem duas filhas, talvez três, e netos, ninguém sabe ao certo, ninguém lhe desembacia a privacidade. Namora com a ex-atleta rítmica Alina Kabaeva, de 38 anos. É público, mas quando a notícia foi publicada, o jornal foi mandado fechar.
O riso é uma arma
Ao contrário de Putin, Zelensky era uma figura ultrapopular na televisão - e nas redes sociais, que continua a usar como exímio veículo de comunicação - quando tomou posse como chefe de Estado. Prometeu diminuir a corrupção e acabar a guerra com a Rússia, que durava há mais de cinco anos. Era filho de uma escola de vida tão diferente, que acreditava que um dia faria rir o maior ditador do Mundo, revelou a um jornalista da "Time". Apesar dessa ingenuidade, comparar Zelensky ao comediante italiano Beppe Grillo não é só injusto, é factualmente errado. Zelensky não é humorista, é um jurista que, aos 17 anos, como tantos jovens daquela região, procurou uma alternativa para não ser engolido pela "cidade dos bandidos", nome que deu a Kryvyi Rih, metrópole trabalhadora do Leste da Ucrânia caída em desgraça económica depois do fim da União Soviética. Foi nessa altura que fundou, com o grupo de amigos, a produtora Kvartal 95 (Distrito 95), em homenagem ao bairro onde crescera. E que depois se multiplicou em filmes, quase sempre como herói romântico, e em programas de talentos (venceu o "Dança com as estrelas" em 2006), até estrear, em 2015, essa premonição chamada "O servo do povo". Mas rir não é pecado. "O riso é uma arma fatal para os homens de mármore", respondeu a Bernard-Henri Lévy, quando o ensaísta o questionou sobre como poderia Putin levá-lo a sério.
Do campo de batalha, Zelensky, que nunca foi militar, conhece bem as feridas desde a II Guerra Mundial. Como todas as famílias judias da Ucrânia, a dele foi perseguida e assassinada. O avô, que comandou o pelotão de artilharia do Exército Vermelho, perdeu o pai e três irmãos no Holocausto. Mais tarde, os pais, um matemático e uma engenheira, ambos falavam russo em casa, impediram-no de estudar em Israel, como queria. Acabou por licenciar-se na Ucrânia, na universidade em que conheceu a mulher com quem haveria de casar em 2003. Olena Zelenska tem 44 anos, é escritora e arquiteta, mãe de dois filhos e seu braço-direito. E também está soterrada num bunker.
O poder totalitário de Putin está na violência e na tirania; o de Zelensky na resistência e na democracia. "Não quero boleia, quero munições", respondeu, sem hesitar, a Joe Biden, quando o presidente dos EUA se disponibilizou para o retirar. A coragem de Zelensky não é encenada. E não é apenas porque, nos vídeos que vai partilhando, surge de t-shirt verde, sem capacete nem colete, no país do frio. Ao recusar fugir da capital para defender a liberdade do povo e a existência da nação, multiplicando apelos a uma Europa tantas vezes surda, ele conseguiu já o que nunca até agora nenhum estadista convencional conseguira: acordar a Alemanha, retirar a Suíça da lendária neutralidade, impor sanções inéditas, despenhar o rublo e congelar as fortunas dos oligarcas russos. "É como se Charlie Chaplin se tivesse transformado em Winston Churchill", rendem-se os observadores citados pela "Time".
Ao segundo dia da invasão, no fim da semana passado, já Putin tinha cuspido, em direto, o argumento da "desnazificação da Ucrânia", já foguetes e mísseis e bombas de fragmentação eram lançadas em várias cidades, já 100 mil militares russos cercavam fronteiras, e estavam ainda os líderes da União Europeia (UE) no habitual impasse retórico. Zelensky pegou no telefone: "Talvez esta seja a última vez que me veem vivo. Sou o alvo n.º 1 da Rússia. A minha família é o alvo n.º 2", disse-lhes. E pediu para aderir à UE. "Tenho a certeza que é justo, tenho a certeza que é possível".
O Mundo inteiro ficou a saber onde é a Ucrânia e parece ter-se unido para a salvar. Mas na verdade é a Ucrânia, pouco mais do que sozinha (a NATO recusou fechar o espaço aéreo da Ucrânia e os EUA descartaram a possibilidade de enviar soldados), quem tenta proteger o Mundo. "Se houver guerra, será uma guerra forte. Todos perderão", vaticinou Zelensky em entrevista ao "The Washington Post", horas antes de a guerra começar. E depois voltou a pegar no telefone. Dessa vez para gravar uma mensagem de voz: "Olá, sou o presidente ucraniano. O meu país nunca atacou o seu. Peço-lhe que leve os seus filhos de volta para a Rússia".