O presidente norte-americano acusou esta quarta-feira Vladimir Putin de ser um criminoso de guerra, o que enfureceu o Kremlin. Contudo, o caminho para a condenação em tribunal pode não ser tão linear.
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É o clube a que ninguém quer pertencer, albergando nomes tão infames como o ditador iraquiano Saddam Hussein, o dirigente nazi Rudolf Hess, o general argentino Jorge Videla ou o líder sérvio Radovan Karadzic, entre centenas de outros nomes mais anónimos.
Embora numerosa, a lista dos criminosos de guerra condenados em tribunal obedece a critérios muito específicos que variam de país para país, o que pode dificultar em grande medida a execução da pena.
Apesar de, no decurso das três últimas semanas, a Rússia ter bombardeado milhares de civis, muitos dos quais abrigados em escolas, hospitais, maternidades ou teatros, não é 100% seguro que isso resulte numa condenação do vitalício presidente russo.
Antes de mais, convém perceber a quem se aplica o termo "criminoso de guerra". Segundo a Convenção de Genebra, assinada após a Segunda Guerra Mundial, qualquer indivíduo incorre nesse crime se violar as regras que integram a lei dos conflitos armados, na sua essência um documento que regula o modo como os países podem agir em tempos de guerra.
Essas regras visam, antes de mais, conferir proteção às pessoas que não participam dos combates, mas também as que se encontram impedidas de lutar, incluindo civis, como médicos e enfermeiros, soldados feridos e prisioneiros de guerra.
Os tratados e protocolos em vigor, sucessivamente atualizados ao longo dos anos, estabelecem também quais as armas proibidas, como as que contêm agentes químicos ou biológicos, ou os que podem ser alvejados.
Quem cometer graves violações a esses acordos internacionais - o que inclui assassinatos premeditados, extensa destruição e apropriação de propriedade não justificada por necessidade militar, ataques injustificados a civis, uso de força desproporcional, ou recurso a escudos humanos e reféns -, fica sob a alçada do Tribunal Penal Internacional (TPI). Sediado em Haia, nos Países Baixos, o tribunal tem ainda poderes para julgar crimes contra a humanidade cometidos no contexto de "um ataque generalizado ou sistemático dirigido contra qualquer população civil", sob a forma de assassinatos, torturas, violações e escravatura sexual.
Para formular uma acusação a Putin, o TPI pode invocar a doutrina legal amplamente reconhecida da responsabilidade do comando. Ou seja, mesmo que o presidente russo alegar desconhecer os crimes cometidos pelas forças invasoras, pode ser acusado na mesma, por nada ter feito para evitá-los.
Os caminhos para a condenação não são assim tão lineares, no entanto. A começar no facto de a Rússia - à semelhança dos Estados Unidos, aliás - não reconhecer a jurisdição do TPI. Por isso, o mais provável seria a Rússia abster-se de enviar um cidadão suspeito de crimes, ainda por cima sendo o seu presidente.
Uma solução para contornar esse problema seria marcar o julgamento num país escolhido pela ONU ou, em alternativa, por um consórcio de países interessados, apesar de que não se afigura provável qualquer colaboração das entidades russas.
Em cima da mesa há outras possibilidades, que tanto podem passar pelo recurso a um tribunal internacional híbrido de crimes de guerra para processar Putin, como uma acusação formulada por países ou grupos que procurariam replicar o que os tribunais militares de Nuremberga fizeram com os líderes nazis.
Há ainda a hipótese de cada país, de acordo com a legislação em vigor, processar o presidente da Rússia por crimes de guerra. A Alemanha foi um dos primeiros países a anunciar essa investigação, que pode resultar na imputação de crimes. Embora a lei dos Estados Unidos da América não contemple essa possibilidade, o departamento de justiça possui uma secção que se debruça sobre atos como genocídio internacional, tortura, recrutamento de crianças-soldados e mutilação genital feminina.
Apesar das evidentes dificuldades em perspetiva, a História recente dá-nos alguns exemplos de líderes condenados em tribunal. Foi o caso do antigo líder jugoslavo Slobodan Milošević, que foi julgado por um Tribunal da ONU em Haia por ter instigado conflitos que resultaram no desmembramento do país. Ao contrário de Milošević, que morreu durante o julgamento, outros responsáveis pela guerra civil, como o seu aliado sérvio-bósnio Radovan Karadžić e o líder militar sérvio-bósnio Gen Ratko Mladić, foram efetivamente condenados e estão a cumprir prisão perpétua.
No continente africano também existem exemplos de condenações efetivas. Hissène Habré, antigo ditador do Chade, foi condenado a pena de morte por um tribunal africano e o liberiano Charles Taylor encontra-se a cumprir uma pena de 50 anos de prisão depois de ser condenado pela prática de atrocidades na vizinha Serra Leoa.