Português dá conta ao JN dos receios de estrangeiros que, como ele, estão encurralados por cortes de estradas e confrontos entre opositores e apoiantes do presidente Evo Morales.
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"A população daqui é a favor de Evo Morales e por agora não tem causado problemas. Só bloquearam as estradas de acesso a Santa Cruz para cortar a chegada de alimentos e combustíveis. Mas a coisa caminha para o feio".
Basílio Airosa é português, natural de Vila Nova de Gaia, mas trabalha para uma empresa espanhola que tem em mãos um projeto de uma central termoelétrica em Entre-Rios. É um fim de mundo do departamento de Cochabamba, no centro da Bolívia, e fica a meio caminho da cidade homónima e de Santa Cruz, capital económica e centro nevrálgico dos confrontos entre apoiantes do presidente de Esquerda reeleito, Evo Morales, do Movimento para o Socialismo (MAS), e opositores alinhados com o liberal derrotado, Carlos Mesa.
Basílio Airosa admite temer pela sua segurança. Porque em caso de aumento da tensão, está demasiado longe - e barrado - de um caminho de fuga. "A minha preocupação é não ter como chegar a um aeroporto, porque está tudo bloqueado", admitiu ao JN.
Os resultados da discórdia
Em causa estão os resultados das presidenciais de 20 de outubro. Deram a vitória com mais de dez pontos de margem a Morales, o que dispensa uma segunda volta. Ora, Mesa denuncia "fraude". Na noite eleitoral, os primeiros resultados apontavam a segunda volta e isso era inédito, mas o Supremo Tribunal Eleitoral suspendeu o escrutínio. Só atualizaria números 24 horas depois, indicando a vitória do presidente, já muito perto do limite para sê-lo à primeira volta, e veria o seu vice-presidente, Antonio Costas, demitir-se em protesto contra o sistema de contagem.
As suspeitas foram imediatas e estenderam-se aos observadores internacionais da Organização dos Estados Americanos e da União Europeia, intrigados pela demora no escrutínio dos últimos votos.
Só no dia 24, o quinto após a ida às urnas, o Supremo Tribunal Eleitoral oficializava os números definitivos: 47,07% contra os 36,51 % de Mesa, uma diferença de 10,56% e, aos olhos da lei eleitoral boliviana, a maioria absoluta (mais de 40% e mais de 10 pontos de vantagem). Já muitos bolivianos desciam à rua em dias consecutivos, reclamando uma esclarecedora segunda volta. No dia 24, os protestos incharam, sobretudo em Santa Cruz, bastião da oposição, de onde foi convocada uma greve nacional. Bloquearam-se estradas e começaram os confrontos, em crescendo até caírem os primeiros mortos, no dia 30.
Foi a notícia que preocupou mais seriamente Basílio Airosa, que diz ter enviado emails à representação portuguesa na Bolívia e à Embaixada de Portugal em Lima, no Peru. Sem respostas. "Enquanto tivermos comida no nosso hotel estamos com sorte".
Nas ruas, as cenas são de barricadas nas principais estradas, confrontos e repressão policial. E, cada vez mais, uma clivagem racista da população. "Quem não salta é uma chola masista, índio de merda", ouviu-se num protesto em La Paz contra Morales, primeiro presidente indígena da Bolívia. Chola é a designação para mulher mestiça indígena, masista é o apoiante do MAS. Esse é precisamente o argumento de Morales para refutar a contestação. Acusa os manifestantes de não reconhecer o voto indígena e denuncia uma tentativa de golpe de Estado da direita. Convocou uma auditoria eleitoral da OEA e convidou Mesa a participar. Mesa recusou. A Bolívia mantém-se na rua.
Perfil
Juan Evo Morales Aymav
60 anos
Presidente da Bolívia
É a 4.º eleição de Morales, socialista e primeiro presidente indígena. Ex-cocalero (cultivo de coca, folha usada em chá ou mascada como tabaco), chegou ao Palacio Quemado em 2006. A contestação das províncias ricas do leste originou uma reforma constitucional e a reeleição em 2009. E de novo em 2014. Em 2016, promoveu um referendo para poder candidatar-se. Os bolivianos rejeitaram. Em 2017, pediu ao Supremo a abolição do limite de mandatos. Aí foi bem-sucedido.