Piloto transgénero processa influenciador que a associou a acidente aéreo em Washington
Uma piloto transgénero dos EUA apresentou, na quarta-feira, uma ação por difamação contra um influenciador conservador que alegou falsamente nas redes sociais que ela estava a pilotar um helicóptero militar que colidiu com um avião de passageiros em Washington no final de janeiro.
Corpo do artigo
Jo Ellis processou Matt Wallace, um influenciador com 2,2 milhões de seguidores na plataforma X, dizendo que este "inventou uma campanha de difamação destrutiva e irresponsável" contra ela após o acidente que matou 67 pessoas a bordo das duas aeronaves, de acordo com o processo aberto no tribunal distrital dos EUA no Colorado.
Uma das suas publicações, que atraiu milhões de visualizações, dizia que a piloto do Black Hawk pode ter participado num "ataque terrorista trans", acusando-a falsamente de causar intencionalmente a colisão aérea devido à sua "depressão" e "disforia de género", de acordo com o processo, citado pela AFP.
O processo acusa ainda Wallace de usar a sua posição de destaque no X, onde mantém várias contas, para tentar "monetizar uma narrativa falsa".
Enquanto dezenas de milhares de publicações nas redes sociais a acusavam falsamente de pilotar o helicóptero acidentado, Ellis preocupava-se que alguém pudesse localizar a sua casa, usando registos públicos. Em declarações à AFP, numa entrevista em fevereiro, disse que foi forçada a mudar temporariamente a sua família para um novo local e a contratar segurança armada privada.
O dano causado por Wallace foi "instantâneo e imenso", resultando em sofrimento para a sua família devido ao ódio inspirado pelas suas "mentiras", acrescenta o processo.
Ellis publicou um vídeo de "prova de vida", o que acabou com apenas alguns dos rumores. “Soube que algumas pessoas me associaram ao acidente em D.C. e isso é falso”, disse Ellis no vídeo. "É um insulto às famílias tentar ligar isto a algum tipo de agenda política. Eles não merecem isto. Eu não mereço isto. E espero que todos vocês saibam que estou viva e de boa saúde, e que isso seja suficiente para acabar com todos os rumores", disse.
O Equality Legal Action Fund, uma organização jurídica LGBTQ que representa Ellis, argumenta na queixa que Wallace "inventou uma campanha de difamação destrutiva e irresponsável" contra Ellis, cuja vida ficou “virada de cabeça para baixo”.
O processo de Ellis procura uma indemnização pelos danos à sua reputação, embora Ellis tenha dito que planeia doar qualquer dinheiro que ganhe com o processo às famílias das pessoas que morreram no acidente.
Wallace não comentou a notícia, embora tenha apagado as publicações sobre Ellis.
Quem é Jo Ellis?
Jo Ellis escreveu, em janeiro deste ano, na plataforma "Smerconish", sobre o seu percurso de vida. A piloto cresceu num lar religioso e conservador e estudou em casa desde o jardim de infância até ao ensino secundário, exceto dois anos.
A família de Ellis é uma "família de serviço", tendo um primo que foi um antigo comandante do Comando Estratégico dos Estados Unidos, um tio-avô que serviu no Exército durante a II Guerra Mundial na Batalha das Ardenas como observador de artilharia avançada; um avô que serviu na Marinha durante a II Guerra Mundial a caçar submarinos; e um irmão que serviu no Exército como operador de tanques M1 Abrams no Iraque em 2003.
"Tenho sintomas daquilo que hoje conheço como “disforia de género” desde os cinco anos. Aprendi cedo a esconder estes sintomas da minha família porque achava que significavam que eu era uma má pessoa. Pensei que se conseguisse ser mais religioso, mais bem-sucedido, mais másculo curaria a minha condição", escreveu. "Casei, comprei uma casa, ajudei a criar uma enteada, toquei bateria na banda da igreja e adotei um cão. Todas as coisas que eu acreditava que um bom homem deveria fazer. E eu queria muito fazer essas coisas, mas também esperava secretamente que isso me corrigisse. Não funcionou".
Durante a pandemia, Ellis percebeu que tinha reprimido os sintomas de disforia de género e estava pronta para enfrentá-los. "Procurei terapia e descobri quais as opções disponíveis. Regressei a casa da escola de aviação e voei com a minha unidade durante um ano antes de dar os próximos passos. Depois de muita orientação e discussão com a minha mulher, concordámos que, para a minha saúde, precisava de tomar medidas no sentido da transição", continuou.
Em 2023, avisou o comando que pretendia iniciar a transição. "Recebi um enorme apoio de toda a minha equipa de comando e tudo seria mantido em sigilo até que estivesse pronta para mudar oficialmente de género. Durante este período, iniciei o tratamento hormonal e comecei a apresentar-me lentamente como mulher em momentos particulares ou em férias", contou. "Em 2024, assumi-me na minha unidade e comecei a apresentar-me publicamente como mulher. Mais uma vez, recebi um enorme apoio da minha unidade como um todo. Paguei do meu bolso todos os cuidados relacionados com as pessoas trans. Os militares não cobriram nada disto".
Ataques à comunidade transgénero
As ameaças enfrentadas por Ellis, que serviu na Guarda Nacional desde 2009 e foi destacada para o Iraque e o Kuwait, realçam o impacto real da desinformação sobre as pessoas transgénero numa altura em que se verificou um aumento acentuado da retórica política contra elas.
As pessoas trans têm sido cada vez mais falsamente culpadas por tragédias e violência nos últimos anos, principalmente após tiroteios em massa. Desde 2022, alegações falsas ou não confirmadas têm ligado pessoas trans a tiroteios em massa em Uvalde, Texas; Nashville, Tennessee; Filadélfia; Madison, Wisconsin; e Des Moines, Iowa.
A comunidade transgénero tornou-se um ponto crítico nas guerras culturais que assolam os Estados Unidos. O presidente norte-americano Donald Trump assinou vários decretos executivos, incluindo um que instruía o governo a reconhecer apenas dois sexos, masculino e feminino.
Após o acidente, Trump sugeriu, sem oferecer qualquer prova, que as práticas de contratação de diversidade da autoridade de aviação poderiam ser parcialmente culpadas, tornando as pessoas trans um alvo fácil para os rumores online. Além disso, dias antes do acidente, Trump tinha assinado uma ordem executiva que tentava proibir as pessoas transgénero de se juntarem às forças armadas, o que levou alguns utilizadores a especular que o acidente foi um ato de terrorismo cometido por um piloto transgénero.
O processo de Ellis faz parte de uma tendência que tem visto os processos por difamação a tornarem-se cada vez mais uma ferramenta utilizada por cidadãos norte-americanos e grupos pró-democracia para responsabilizar financeira e pessoalmente os disseminadores de desinformação.