"Ricardo" mudou-se há cinco anos e viu um território inóspito, com vontade de florescer económica e politicamente. Os militares voltaram ao poder na antiga Birmânia e a democracia parece novamente uma miragem.
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Mais de nove mil quilómetros separam Portugal de Myanmar. Uma distância ainda assim pouco significativa para quem se apaixonou por um país, que é casa de 53 milhões de habitantes, mas não é a de "Ricardo". O empresário de 43 anos é um cidadão do Mundo: natural de Palmela, distrito de Setúbal, esteve em Inglaterra e na Austrália, até que se apaixonou por aquele pedaço da Ásia. "Naquela altura, fazia sentido investir", explica ao JN. O momento era o ano de 2015, quando a antiga Birmânia estava em período de transição após o cessar-fogo nacional, conhecido por NCA (sigla em inglês), entre o Governo e várias organizações armadas étnicas (EAOs), assinado no dia 15 de outubro.
Numa cidade longe da capital de Myanmar, Naypyidaw, "Ricardo" assentou a mochila de viajante e criou pequenos negócios, orientados para o turismo. Hoje, a calma não paira por lá, desde que os militares executaram um golpe de Estado a 1 de fevereiro deste ano. Aung San Suu Kyi, conselheira de Estado e rosto da democracia, e Win Myint, presidente desde 2018, foram detidos e muito pouco se sabe, desde então, sobre os dois. As Forças Armadas alegam que houve fraude eleitoral em novembro de 2020, quando a Liga Nacional pela Democracia (NLD), partido de Suu Kyi, venceu o escrutínio por 83% dos votos. O general Min Aung Hlaing está agora no poder e por lá pretende ficar durante um ano, o tempo que os militares definiram numa espécie de "estado de emergência".
Apesar do clima de "desilusão", o português, que preferiu não ser identificado por segurança, afirma ao JN que este foi "um golpe de Estado de que ninguém estava à espera". Nos últimos tempos, a conselheira de Estado, que para a maioria dos birmaneses é considerada a "mãe da Nação", foi fortemente contestada por não reconhecer a perseguição à minoria étnica muçulmana rohingya. O genocídio pelas Forças Armadas e a polícia de Myanmar resultou em mais de 25 mil mortes até agosto de 2018, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU). Ao dia de hoje, o número de vítimas desta etnia deverá ser muito mais elevado.
"Ricardo" reconhece que aos olhos da maioria dos europeus, Suu Kyi não é uma pessoa confiável devido à tragédia humanitária. Contudo, em Myanmar, a realidade é muito diferente. "Ela é o Nelson Mandela cá do sítio", diz. Os militares têm garantido 25% dos lugares no Parlamento e nomeiam os ministros da Defesa, do Interior e das Fronteiras de Myanmar, além de terem impedido, através da Constituição, que a conselheira de Estado pudesse ser presidente. A vitória esmagadora do NLD em novembro enfraqueceu as Forças Armadas, que clamam o interesse nacional perante as alegadas irregularidades nas eleições.
Ela é o Nelson Mandela cá do sítio
O empresário está distante de Yangon, palco da maioria dos protestos pró-democracia. Ao contrário dos birmaneses, não se sente constantemente vigiado pelos militares nas ruas, embora a presença armada seja omnipresente. "É uma guerra entre o Exército e o povo de Myanmar", que "mais cedo ou mais tarde vai terminar em guerra civil", adianta. As histórias de pessoas "apanhadas" por balas perdidas ou as fugas a meio da noite são constantes. Mas debaixo de um recolher obrigatório, entre as 20 e as 4 horas, o português tenta manter-se o mais seguro possível, consciente de que o aspeto de forasteiro o ajuda nas horas mais críticas.
Muitos têm-se recusado trabalhar enquanto a junta militar estiver no poder, principalmente os funcionários públicos. Por isso, é comum ver por estes dias bancos e hospitais de portas fechadas. O clima está tão exacerbado entre as duas partes, militares e organizações étnicas armadas, que as redes sociais (onde o "Facebook é rei", diz "Ricardo") inundam-se de fotografias de quem ousa "furar a greve". Há inclusive quem deixe empregos em altos cargos para se juntar aos movimentos de desobediência civil nas cidades natais, conta o português.
Desde 1 de fevereiro, data do golpe de Estado, mais de 700 pessoas morreram devido à repressão militar, de acordo com dados da Associação Birmanesa de Assistência a Presos Políticos (AAPP). Muitas delas são crianças. "Acredito que o número é muito mais elevado", diz o empresário.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros português adianta ao JN que a embaixada de Portugal em Banguecoque, na Tailândia, país vizinho de Myanmar, "mantém contacto regular com cerca de 20 cidadãos" portugueses. A mesma nota refere que alguns já terão saído do país, mas o Governo não recebeu qualquer pedido de ajuda até ao momento. A tutela aconselha ainda assim que os cidadãos ponderem o regresso a Portugal.
Neste momento, há expectativa no ar, mas a esperança desvanece-se a cada dia. A inexistência de sanções severas ao país conduz os birmaneses à descrença na comunidade internacional, especialmente na ONU, que não reconhece o golpe e tem tentado junto de outros países a condenação global à "catástrofe humanitária" em Myanmar. "Estarem sozinhos é, neste momento, a grande desilusão", conclui o português.
Viver com a mochila preparada para fugir
Num território repleto de diversidade cultural, onde mais de 100 etnias confluem, assim como diferentes religiões, Myanmar tem ciclicamente momentos tensos na sua História. Sabine, alemã de 60 anos, chegou ao país num momento de transição, em novembro de 2015, um mês depois do acordo de cessar-fogo entre militares e grupos étnicos armados. "Era suposto ser tudo pacífico. Construí uma casa, não pagava renda, tinha água, muita liberdade e era um paraíso para as crianças", recorda ao JN. A médica de profissão tem seis filhos - quatro são adotados - e casou com um birmanês.
Mora numa pequena vila na província de Kayin, controlada pelo partido político União Nacional Karen, que tem uma milícia para proteger a zona. No final de março, aviões e drones do Exército birmanês sobrevoaram a área. A imagem foi suficiente para que os líderes da comunidade pedissem a todos para "fazer as malas com os pertences mais necessários e preparar abrigos", conta Sabine. "Tenho uma mochila sempre preparada", acrescenta.
A comunicação com o Mundo fora de Myanmar é muitas vezes feita através de militância nas redes sociais, onde os ativistas contra o golpe militar desenrolam os argumentos para aderir à desobediência civil e aos protestos. Mas há um problema: o acesso limitado à Internet. Da 1 às 9 horas não se consegue aceder ao mundo digital, e fora deste horário, a ligação é também deficitária. Não é possível, por exemplo, ligar através de rede wireless (sem fios).
Tenho uma mochila sempre preparada
Parte das reivindicações tem ganhado força nos mais jovens. Nyan, de 18 anos, não consegue esconder a frustração de ver o país nas mãos dos militares. "Como tenho familiares que fazem parte do Movimento de Desobediência Civil, temos de estar sempre alerta e ter cuidado para que os soldados ou a polícia não os venham prender", afirma ao JN.
O estudante birmanês não encontra outra justificação para o golpe de Estado que não seja a procura pelo poder. "Tudo estava a correr bem antes disso", opina. Mesmo perante a crise humanitária dos rohingya, Nyan coloca a responsabilidade sobre as Forças Armadas, apesar da contestação ocidental feita também a Suu Kyi.
Por seu lado, Sabine é "muito crítica" da conselheira de Estado deposta. "Não a vejo como alguém de mente aberta", sobretudo perante as minorias étnicas, esclarece. Nas eleições, a alemã refere que várias áreas de Myanmar foram excluídas do escrutínio, mas tal não justifica "os ataques e as mortes", nem as acusações de crimes de que Aung San Suu Kyi é alvo. "Um governo multiétnico tem de tomar o poder", vaticina.