Na data em que se assinala o Dia Internacional de Luta Contra a Discriminação Racial, o balanço é triste. Nos Estados Unidos, os casos de violência contra ásio-americanos dispararam no último ano. Biden quer combater o "veneno horrível" que infesta o país com exposição e leis.
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Passam hoje 61 anos desde o Massacre de Sharpeville, a 21 de março de 1960, na África do Sul, quando, numa manifestação pacífica contra a Lei do Passe, que obrigava a população negra a usar um cartão que indicava por onde podia circular, a Polícia disparou, matando 69 pessoas e ferindo 186. O momento, um dos mais sangrentos da história do apartheid, levou, seis anos depois, a Organização das Nações Unidas a assinalar, na mesma data, o Dia Internacional de Luta Contra a Discriminação Racial. Se celebrá-lo é combater a discriminação que persiste, mais sentido terá fazê-lo em ano de pandemia. Uma pandemia provocada por um vírus surgido num lugar do mundo que contrasta com os outros lugares onde a doença chegou. E como a intolerância pela diferença às vezes é a gasolina que inflama ódios, esta crise mundial, além de tudo o resto, também gerou violência.
Ataques aumentaram 39%
Nos Estados Unidos, onde a marginalização de ásio-americanos tem raízes profundas, os crimes de ódio têm vindo a aumentar e, por arrasto, a insegurança e o descrédito pelas autoridades. "Volta para Wuhan, p**a, e leva o vírus contigo". "Tu e a tua gente são a razão de termos corona". "Acabámos com as vossas empresas, devolvemos os estudantes internacionais...quando é que vocês embarcam? Vamos tirar-vos a cidadania". "Mais uma asiática a andar no meu carro hoje, espero que não tenhas covid". As frases (há muitas mais) constam no recente relatório do "Stop AAPI Hate", conjunto de organizações que rastreia incidentes de violência e assédio contra a comunidade ásio-americana no país, que dá conta da torrente de ódio que floresceu na primavera passada, e que, dizem os líderes comunitários, foi estimulada pela retórica de Trump - que, entre outras declarações polémicas, se referiu ao SARS-CoV2 como "o vírus da China". Desde março passado, a organização registou cerca de 3800 atos racistas e discriminatórios: ataques de rua, agressões físicas, assédio verbal, atos de vandalismo, perseguição online, atitudes discriminatórias no trabalho, discursos xenófobos. De acordo com dados do instituto de sondagens "Pew Research Center", 39% da comunidade asiática diz que os ataques se tornaram mais comuns desde o início da pandemia.
Ainda esta semana, oito pessoas, entre as quais seis mulheres de origem asiática, foram mortas a tiro em ataques a três spas de massagens asiáticos no Estado da Geórgia. As motivações estão sob investigação e, embora o agressor, de 21 anos, tenha negado motivação racista (recordemos que a moldura penal é superior para esses casos), as comunidades ásio-americanas estão em alerta. Antes, em janeiro, um homem de 84 anos nascido na Tailândia foi violentamente atirado contra o chão, em São Francisco, Califórnia, vindo a morrer dois dias depois. Em fevereiro, um homem chinês caminhava junto ao bairro de Chinatown de Manhattan, em Nova Iorque, que abriga um dos maiores enclaves de chineses no hemisfério ocidental, quando foi surpreendido por um jovem que o esfaqueou nas costas - sem evidências suficientes de motivação racista, o agressor foi acusado de tentativa de homicídio, mas não como crime de ódio, o que originou vários protestos de ativistas. No mesmo mês, numa rua cheia de pessoas em Queens, um homem agrediu uma mulher asiática que esperava na fila para uma padaria: gritou-lhe "sai-me da frente" e atirou-a ao chão, naquele que foi só um dos quatro episódios violentos contra ásio-americanos só nesse dia.
"O nosso silêncio é cumplicidade"
A partir da Geórgia, onde na sexta-feira se encontrou com líderes ásio-americanos, o presidente Joe Biden exortou os americanos a falarem contra o racismo, "veneno horrível que há muito tempo assombra e atormenta" o país. "O nosso silêncio é cumplicidade", disse o democrata, apelando ao Congresso que aprove o projeto de lei de crimes de ódio relacionados com a pandemia (apresentado este mês por dois legisladores ásio-americanos), que reforçaria os esforços do Departamento de Justiça para combater tais atos, agilizando a resposta do Governo federal e dos poderes estaduais e locais face ao aumento dos crimes de ódio.
Entrevista
A pandemia exacerbou xenofobia em algumas partes do mundo. Nos EUA, dispararam atos discriminatórios contra ásio-americanos. O que espoleta o agravamento de intolerância?
O poder político tem um papel importante, tanto em apaziguar ou controlar movimentos racistas, como em agravá-los. Estamos ainda a lidar com o impacto da presidência de Donald Trump, que encorajou movimentos de extrema-direita com dimensão racista enquanto denegriu movimentos antirracistas. É o racismo que fratura sociedades, como se vê com o caso norte-americano, que ainda não conseguiu superar a herança da escravatura e da reconstrução falhada dos estados do sul. A campanha contra a China lançada por Trump, dada a competição económica, combinada com a atribuição de culpas pelo Covid, tem igualmente um papel que não pode ser ignorado.
O que devem fazer os vários Governos, incluindo a Administração Biden, para travar a escalada de crimes de ódio?
O Presidente Biden tem tentado contrariar a exasperação do racismo pela administração anterior. Condenou claramente o racismo e apelou à união de todos os norte-americanos. Trata-se de uma mudança clara de política, esperemos que contribua para apaziguar a situação. Como se vê, o racismo mata e nos Estados Unidos tem uma tradição sinistra. Para já, o Presidente Biden tem feito o que lhe compete, confortado por uma vitória eleitoral onde os movimentos antirracistas desempenharam um papel importante.
E qual o papel da sociedade civil?
O antirracismo está inscrito na lei desde os anos de 1960 com a emergência da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, onde vários ativistas, como Martin Luther King, foram assassinados. Esse movimento foi crucial para acabar com a discriminação formal. O Black Live Matters, que cresceu em resposta à morte de George Floyd pela Polícia, é um dos movimentos que procura acabar com o racismo que subsiste nas instituições norte-americanas, sobretudo na política, nos tribunais e no sistema prisional. No caso europeu, as associações antirracistas têm desempenhado um papel importante. A carta dos direitos fundamentais da UE e os últimos documentos para a cimeira da UE sobre este problema procuram reforçar uma opinião antirracista que permita a completa implementação da lei. As sucessivas sondagens de opinião são feitas para permitir identificar e extirpar racismo enquanto preconceito e discriminação que viola o princípio da igualdade entre todos os seres humanos.
Sobre o caso português, considerou recentemente que "Portugal sofre de tolerância em relação a atitudes e comportamentos racistas". O que falta para alterar esse paradigma?
A legislação portuguesa é impecável, temos a norma antirracista inscrita na nossa Constituição e na legislação penal, o que falta é uma vontade política de implementação sistemática que deveria ser partilhada por todas as instituições, sobretudo pela polícia e pelos tribunais. Trata-se de um domínio fundamental dos direitos humanos, sobre o qual deve haver tolerância zero. Felizmente há associações e movimentos de cidadãos que têm alertado para situações intoleráveis de discriminação e violência racistas, mas ainda há muito por fazer para impedir atos diários que nos envergonham e têm consequências negativas a todos os níveis, nomeadamente económicas. Precisamos de uma sociedade integrada e digna, sem fraturas impostas pelo racismo.