Refugiados sírios sentem-se abandonados: "Não há nada para nós, só para os turcos"
Refugiados sírios a viver na maior cidade da região turca afetada pelo sismo, sentem-se abandonados pelo Estado de Erdogan, onde vivem ao frio em tendas improvisadas e com falta de tudo, até do direito a falar.
Corpo do artigo
No centro de Gaziantep, junto ao Jardim Botânico, concentram-se centenas de tendas da AFAD (organização do Estado turco dedicada à resposta a catástrofes).
Lá dentro, a agência Lusa encontra Omar Mohammed e a sua mulher, refugiados sírios de Alepo.
Assim que começa a falar, surge um homem turco que diz ser da organização daquele campo para desalojados, para sublinhar o bom trabalho que tem sido feito pelo Estado turco.
Diz que há 5.500 pessoas naquele campo, num total de 421 tendas, que se dá prioridade a grávidas, pessoas com deficiência, mulheres e crianças.
"Há órgãos de comunicação social a dizer coisas más sobre a Turquia. É tudo mentira", diz, antes de abandonar o local.
Assim que se vai embora, Omar, de 44 anos, conta outra história.
"Estive uma semana na rua. A minha mulher conseguiu ir para uma tenda, aqui, só para mulheres. Eu andei pela rua. Para não congelar os pés, estava sempre a andar, durante a noite", diz.
Na terça-feira, conseguiu uma tenda, quando muitos já regressavam às suas casas ou foram para casas de familiares no oeste da Turquia.
"Foi dada prioridade aos turcos nas tendas. Vi um turco até a queixar-se às autoridades do porquê de uma família síria ter uma tenda, de onde acabou expulsa para dar lugar a turcos", conta Omar, que sublinha que já havia xenofobia antes e mantém-se mesmo após a catástrofe.
Noutro campo, numa zona pobre de Gaziantep, onde estarão cerca de 1.000 pessoas, na maioria refugiados sírios, o cenário é completamente diferente.
Ali não há tendas da AFAD, apenas estruturas feitas de forma bastante precária com lonas de plástico azuis, atadas a paus, dispostas num descampado cheio de pedras, junto a uma mesquita (é nesse espaço religioso que estão as únicas casas de banho do acampamento).
Ayshe Hussein, refugiada de 28 anos, que está ali com o seu marido e os dois filhos de 11 e sete anos, rejeita qualquer crítica às autoridades turcas e diz que tem tudo o que precisa e que várias pessoas têm ido ao acampamento prestar apoio, apesar de as condições serem visivelmente diferentes daquele instalado no centro de Gaziantep, onde há até espaços com comida e bebidas quentes.
"Estou aqui há nove anos e todos os turcos que conhecemos são bons para nós", sublinha.
Apesar disso, admite que faltam cobertores e madeira para se aquecerem.
"À noite, é tanto o frio que não conseguimos dormir. Esperamos apenas para que o sol nasça, pela luz, para nos conseguirmos aquecer", conta a doméstica de 28 anos.
Também Imad Haji, sírio de etnia turcomena, diz que não falta nada e que várias organizações têm ajudado as pessoas que ali passam os dias, mais de uma semana após o sismo.
Fethiye Kazziz, refugiada síria de 50 anos, contextualiza: "Algumas pessoas vêm aqui, sim, mas são voluntários, que nos trazem comida ou água".
"Do Estado, só dão aos turcos", afirma a matriarca de uma família de 30 membros, que se distribui por algumas tendas.
"Comprámos os plásticos e montámos as tendas nós próprios. Ninguém nos deu um cêntimo. Não temos água, nem dinheiro. Não há ajuda suficiente para nós", disse.
Um dos seus filhos chama a atenção: "Reparem, só os turcos é que receberam tendas da AFAD".
Fethiye, sentada num banco, diz que a discriminação que sentem já vem de trás.
Há oito anos em Gaziantep, cidade de mais de dois milhões de habitantes que tem cerca de meio milhão de refugiados sírios (está a uma hora da fronteira), a mulher de 50 anos diz que um dos filhos já foi assaltado por turcos e que o assédio é regular.
"Qualquer coisa, a culpa é dos sírios. É absolutamente insuportável esta situação. Há boas pessoas, mas também há más. Em todas as situações, se há algum problema, começam logo a ameaçar que nos deportam", frisa.
Enquanto Fethiye fala, Ismail Samad, outro refugiado sírio, aborda a agência Lusa para queixar-se da sua situação.
"Não recebemos nada. Não tenho água, comida é pouca e o dinheiro que tinha nos bolsos, foi-se", diz o homem com quatro filhos, que está junto com outras quatro famílias, num total de 15 tendas.
Numa pequena tenda branca, dormem as mulheres e crianças, "uns por cima dos outros", que não há espaço para mais.
Os homens ficam de volta de uma salamandra, alimentada a madeira, onde passam a noite, ao frio.
Ismail conta que já foram jornalistas ali após o sismo e que a seguir veio a polícia dizer para não falarem.
"Temos medo que nos façam alguma coisa. Aqui, não temos direitos nenhuns", diz.
Enquanto fala com a agência Lusa, um grupo de turcos começa a rodear a equipa de reportagem e a tentar perceber o que se passa. Abordam o fotojornalista da agência Lusa, que lhes mostra que não tirou qualquer fotografia deles.
O tradutor que está com a agência Lusa explica que aquele grupo de turcos (nenhum deles a representar qualquer autoridade) exigia ver uma permissão para a reportagem.
São mostradas as carteiras profissionais, mas os populares não ficam satisfeitos. O tradutor tenta acalmar o grupo, mas os gritos sobem de tom e são ditos impropérios.
Segundo o tradutor, dizem que não precisam de ajuda de ninguém, que têm ajuda do Governo. Têm receio de que os jornalistas contem histórias más sobre eles, explica.
A equipa de reportagem da agência Lusa diz que irá embora.
Depois de entrar no carro, a equipa de reportagem parou num semáforo vermelho, ainda ao lado do campo. Dois homens, que estavam no grupo de turcos que gritaram impropérios contra a reportagem da agência Lusa e o seu tradutor, forçaram a abertura das portas dianteiras do carro, tentaram retirar os seus ocupantes e ainda os tentaram agredir.
A equipa da agência Lusa decidiu arrancar, ainda com as portas da viatura abertas, e abandonar o local, com receio pela sua integridade física e do seu tradutor.