Numa reviravolta inesperada de um conflito já bastante cansado, a Ucrânia entrou na Rússia, mas garante que não quer anexar territórios. O objetivo desta incursão “legítima”, como defende a diplomacia ucraniana, é apenas destruir infraestruturas bélicas.
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Neste momento, o exército já controla mais de mil quilómetros quadrados dentro da Federação Russa. Para comparação, a Rússia avançou 1360 quilómetros quadrados em território ucraniano desde o início do ano, de acordo com uma análise da AFP. No total, desde que arrancou a invasão, a Rússia ocupou 65.891 quilómetros quadrados na Ucrânia, segundo dados de segunda-feira.
"Ao contrário da Rússia, a Ucrânia não precisa da propriedade de outras pessoas", defendeu na terça-feira o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Georgii Tykhii. As condições para a ofensiva ucraniana parar são simples: a Rússia deve “restaurar uma paz justa” e terminar a sua invasão.
No dia 6 de agosto, as tropas e os tanques ucranianos passaram da defesa ao ataque e atravessaram a fronteira russa em Kursk. Foi a primeira incursão estrangeira na Rússia desde a Segunda Guerra Mundial.
E, ao que tudo indica, fizeram-no sem grande dificuldade - em contraste com a ofensiva russa, que já se estende em território ucraniano há mais de dois anos. "Não protegeram a fronteira. Só tinham minas antipessoal espalhadas pelas árvores junto à estrada e algumas minas que conseguiram lançar rapidamente ao longo das autoestradas", disse o militar ucraniano Ruzhyk, citado pela AFP.
Kiev enviou milhares de soldados para a fronteira numa operação relâmpago que apanhou a Rússia desprevenida e resultou na ocupação de mais de duas dezenas de cidades e aldeias russas pelas forças ucranianas. A correr atrás do prejuízo, Moscovo reforçou outras fronteiras vulneráveis e deslocou centenas de milhares de residentes.
O presidente Vladimir Putin já prometeu vingança e aproveitou para, uma vez mais, culpabilizar o Ocidente. "O inimigo, com a ajuda dos seus chefes ocidentais, está agora a efetuar a sua aposta, e o Ocidente mantém uma guerra contra nós utilizando-se dos ucranianos para melhorar a sua posição negocial no futuro", disse Putin, durante uma reunião especial sobre a situação, que foi transmitida pela televisão estatal.
A estratégia ucraniana passa, precisamente, por “desestabilizar a Rússia”, como justificou um alto funcionário da Defesa ucraniana no sábado à noite. Ocupados a proteger as fronteiras, os soldados russos não poderão continuar a avançar em força e número na Ucrânia. O que, por si só, já é uma grande vitória, disseram os militares ucranianos à AFP. Veem a guerra em Kursk como um estímulo moral para a debilitada e insuficiente defesa ucraniana.
No entanto, os ataques russos em Donetsk - uma região há muito cobiçada por Putin - não cessaram. O Instituto para o Estudo da Guerra, um grupo de investigação norte-americano, confirmou que as forças russas continuaram a avançar na região industrial nos últimos dias.
Bombas planadoras
Em Kursk, a Rússia tem respondido ao ataque com um grande número de bombas planadoras, segundo relataram militares e civis deslocados. As autoridades locais disseram na segunda-feira que são lançadas entre 40 a 50 bombas todos os dias. A surpresa foi tal que, até serem mobilizadas mais tropas, a única defesa possível são os bombardeamentos aéreos. Ao contrário das batalhas em Donetsk, não estão a ser usados drones pela Rússia.
Tanto Moscovo como Kiev têm mantido alguma discrição em relação aos combates em Kursk. Putin já ordenou que as tropas “expulsem” os atacantes e é esperada uma retaliação em força. “Não diria que a luta está particularmente difícil neste momento. Mas, sim, será em breve”, partilhou o soldado Ruzhyk.
O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, quebrou o silêncio e referiu-se pela primeira vez à incursão num discurso no sábado, argumentando que é “justo” destruir as posições de onde o inimigo ataca. “A Rússia trouxe a guerra, agora está a regressar a casa. A Ucrânia sempre quis apenas a paz e nós vamos certamente garantir a paz”, contrapôs.
Na terça-feira, os serviços de inteligência russos acusaram o presidente de tomar medidas “loucas” que ameaçam uma escalada da guerra além do seu país.
Crimes de guerra
De acordo com o alto funcionário da Defesa ucraniana, as tropas estão a "respeitar rigorosamente o direito humanitário internacional", para garantir que as barbaridades cometidas pela Rússia em Bucha e Irpin não sejam replicadas agora que as posições se inverteram. "Não executamos prisioneiros, não violamos mulheres, não pilhamos", garantiu o responsável no sábado.
Contudo, a Rússia alega que já foram cometidos “crimes de terrorismo” em Kursk e acusou dois comandantes ucranianos, Vladimir Pipko e Emil Ishkulov, de "atos de terrorismo, homicídio e tentativa de homicídio".
A porta-voz da Procuradoria-Geral da Federação Russa, citada pela agência de notícias estatal russa TASS, disse que são suspeitos de terem dirigido ataques seletivos contra a população civil e infraestruturas. Em causa está um alegado ataque com um drone ucraniano enquanto civis fugiam do mosteiro de São Nicolau Gornalsky, no distrito de Sudzhansky, resultando em pelo menos uma morte.
Pelo menos 12 pessoas morreram e 121 ficaram feridas na ofensiva em Kursk, segundo um balanço provisório avançado pelas autoridades locais na segunda-feira. Porém, o Ministério da Defesa russo anunciou no domingo que 1350 soldados ucranianos foram mortos e 29 tanques destruídos.
Cerca de 200 mil pessoas foram deslocadas das fronteiras russas.