Vladimir Putin socorreu-se da História para argumentar que o Estado ucraniano é uma ficção. Uma criação de Lenine, "seu autor e arquiteto". Uma parte de verdade, outro tanto de manipulação, mas, ao final do dia, pouco mais do que demagogia de um "czar" sem escrúpulos. É verdade que a Ucrânia, enquanto Estado independente, tem apenas três décadas de vida. Mas o seu extenso território já albergou várias entidades políticas. Sempre subordinadas a poderes mais fortes. Como o "reino dos nus e dos famintos".
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O título é declaradamente "roubado" ao historiador Norman Davies, que, no seu livro "Reinos desaparecidos. História de uma Europa quase esquecida", dedica um dos capítulos ao reino da Galícia e Lodoméria (que corresponde grosso modo ao que hoje conhecemos como Ucrânia Ocidental). Foi criado em 1773 pelos austríacos (e portanto muito antes de Lenine nascer), a partir dos despojos da chamada primeira partilha da Polónia (e haveria mais dois momentos de partilha desse outro grande império europeu).
O que é hoje a Ucrânia já foi muitas coisas. Mas este "reino dos nus e dos famintos" (uma referência ao facto de a maioria esmagadora da sua população ser formada por camponeses em estado de servidão, que viviam em condições miseráveis) teve capital em Lvov (Lemberga para os austríacos) e até um Parlamento, desde 1871. Atravessou três séculos e sucumbiu apenas nos picos de violência associados à Primeira Grande Guerra Mundial e à Revolução Russa, altura em que os seus despojos voltaram a ser baralhados e redistribuídos.
Terras de fronteira
Ainda antes dos caprichos e das carnificinas do século XX (período em que começam os episódios prediletos de Putin), e tentando simplificar um passado complexo, que inclui mudança de religiões, fronteiras e povos, note-se o facto de a História mais recente nos indicar uma tendência para a existência de duas Ucrânias: a Ocidental, na esfera de influência austríaca; e a Oriental, na esfera de influência russa.
E ambas, durante muitos séculos, sob domínio desse terceiro grande império que atravessou a Europa de Leste, uma vezes denominado como Lituânia, outras como Polónia, outras ainda como comunidade polaco-lituana (e que nesta designação coincidiu com o apogeu territorial do império, que se estendia do Mar Báltico ao Mar Negro, formando uma espécie de zona tampão entre um ainda incipiente império russo e as potências que haveriam de emergir na Europa Central).
Mais para Leste da Galícia estavam as terras que tinham Kiev como principal referência - também conhecido por "Rus", entidade reivindicada com razão e mitificada sem escrúpulos por nacionalistas russos e ucranianos. E, a partir de certa altura, a Moscóvia, que haveria de dar origem ao imenso império czarista da Rússia. Como já escreveu José Milhazes, o correspondente da RTP em Moscovo durante os anos da cortina de ferro, eram territórios de fronteira (diz o jornalista que a fonética de Ucrânia remete precisamente para "a fronteira") disputados pelos tártaros da Crimeia (com procuração do Império Otomano), polacos, russos e até os cossacos.
A primeira independência
Com o eclodir da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Bolchevique (e a guerra civil que se lhe seguiu), uma parte do que é hoje a Ucrânia declarou, pela primeira vez, a sua independência, com um empurrão de austríacos e alemães, que eram já a potência dominante do Eixo. Sol de pouca dura, no entanto.
Com o tratado de Brest-Litovsk, através do qual Lenine e os bolcheviques tentaram assegurar a sobrevivência do novo regime comunista; e com a guerra que se seguiu entre brancos (polacos) e vermelhos (russos), impôs-se nova divisão dos despojos: a zona Ocidental da Ucrânia ficou na posse da Polónia (a Galícia foi até rebatizada como Pequena Polónia Oriental), e a zona Oriental na esfera russa, transformando-se, poucos anos depois, na República Socialista Soviética da Ucrânia.
República do nus e dos famintos
E nesse sentido, sim, como afirmou Putin, "o seu autor e arquiteto" foi Lenine. Mesmo que o atual líder russo lhe tenha acrescentado a sua particular leitura política e histórica dos acontecimentos: "Esse processo começou imediatamente após a Revolução de 1917. E, além disso, Lenine e os seus associados fizeram-no de maneira descuidada em relação à Rússia - dividindo, arrancando pedaços do seu próprio território histórico".
As preocupações geopolíticas de Putin contrastam com o silêncio relativamente às desastrosas políticas económicas dos bolcheviques que conduziram às grandes fomes dos anos 30, que mataram milhões de pessoas (na Rússia como na Ucrânia) e justificam de novo o uso do epíteto, já não de reino, mas de república socialista dos nus e dos famintos.
Nova divisão dos despojos
Não acabou por aqui a partilha de despojos destes territórios na fronteira de tantos impérios. Depois de ter sido o palco sangrento de várias batalhas da Primeira Guerra Mundial, chegou a Segunda e o seu alargado catálogo de horrores. Que os ucranianos, fossem eles russos, judeus, polacos ou ucranianos propriamente ditos, sofreram como poucos.
Logo em 1939, e na sequência do famigerado pacto Molotov-Ribbentrop (os nomes dos ministros dos Negócios Estrangeiros da Rússia soviética e da Alemanha nazi), não foi apenas a Polónia a ser dividida ao meio. Foi nessa altura que a maioria do que é hoje a Ucrânia foi de facto integrada na União Soviética. Por pouco tempo, uma vez que em 1941 Adolf Hitler deu início à conquista para Leste.
No final da guerra, toda a antiga Galícia acabou integrada na URSS e a importante percentagem da população polaca, foi obrigada a seguir mais para Oeste, ocupando os territórios que uma nova Polónia confiscou à Alemanha. Mas foi já depois da morte de José Estaline que o seu sucessor, o ucraniano Krutschev, acabou de compor as fronteiras da Ucrânia, juntando-lhe, nos anos 50, a península da Crimeia. Essa mesma que Putin, em 2014, decidiu anexar unilateralmente.
Os parentes tresmalhados
Entre as frases da sua elegia de segunda-feira, e tendo como pano de fundo o seu direito a intervir na Ucrânia, o novo "czar" da Rússia (Putin impôs uma alteração à Constituição que acabou com a limitação inicial de mandatos, prometendo eternizar-se no Poder, à imagem e semelhança dos antigos imperadores com capital em São Petersburgo) lembrou que não estava a falar de um povo qualquer.
São "parentes, pessoas ligadas a nós pelo sangue, pelos laços familiares". Mesmo que sejam irmãos tresmalhados, que "desperdiçaram não apenas o que lhes demos durante a [União Soviética], mas também tudo o que herdaram do Império Russo, até mesmo [o legado de] Catarina, a Grande". E é factual que a história e a cultura da Rússia e da Ucrânia (a sua metade Leste) estão entrelaçadas: partilham a religião ortodoxa, as línguas, os costumes e até a culinária.
Mudar fronteiras no século XXI
Putin no entanto usa a História como base para o argumento "de que a Ucrânia não tem atualmente os tipos de direitos que associamos a nações soberanas", explica Joshua Tucker, citado pelo " New York Times". "Foi um sinal de que Putin pretende argumentar que uma intervenção militar na Ucrânia não violaria a soberania de outro país", acrescenta o professor de ciência política. Para voltar ao tipo de terminologia usado pelo líder russo, o que está a acontecer é então uma chamada de atenção a esse "irmão mais novo" que, desde que se tornou independente, tentou "distorcer a consciência, a memória histórica de milhões de pessoas, gerações inteiras que vivem na Ucrânia".
Mas, se a História pudesse ser usada como argumento para alterar fronteiras, o que é hoje a Federação Russa poderia amanhã, no limite, e com toda a legitimidade, transformar-se numa constelação de dezenas de países, tantas são também as suas diferenças culturais, religiosas, étnicas e linguísticas. No século XXI, as fronteiras só podem ser redesenhadas por consenso, nunca por imposição do mais forte. Os impérios russos do século XIX e soviético do século XX já não existem. A História serve para explicar como é que chegámos onde chegámos, mas não para justificar as ações violentas do presente e do futuro.