Entre a região de Ayvalik, na Turquia, e a costa norte da ilha de Lesbos, na Grécia, são apenas seis milhas náuticas. Cerca de 11 quilómetros. Essa é a zona do Mar Egeu mais utilizada pelos migrantes e refugiados que tentam a sua sorte na travessia rumo à Europa.
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É junto à pequena povoação de Skala Sikaminias, no lado grego, que chega a grande parte dessas pessoas que fogem à guerra e à miséria. Isso explica-se com o facto de ali perto, em cima de uma falésia, existir um farol cuja luz funciona como ponto de referência para quem conduz os botes na imensa escuridão da noite.
É uma localidade pequena - vivem apenas cerca de 150 pessoas - e bastante pitoresca, com um porto para barcos de pesca, três ou quatro esplanadas, casas em pedra com vista para a Turquia.
Há mais de um ano que os seus habitantes estão habituados a ver chegar pessoas de ar espavorido com o laranja dos coletes de salvação em cima de roupas ensopadas.
Skala Sikaminias simboliza, muito provavelmente, a porta da Europa mais utilizada pelos refugiados. Foi aí que a Policia Marítima Portuguesa (PM) trabalhou durante um ano. Terminou ontem a sua missão ao serviço da agência Frontex. Desde 1 de outubro de 2015 que uma equipa de 11 agentes da PM patrulhou essas águas, todas as noites, a bordo de lancha. A missão teve um objetivo bem definido: resgatar os refugiados dos botes e trazê-los em segurança para terra firme.
Ao longo de 12 meses, a PM resgatou 3674 pessoas, entre as quais 894 crianças e bebés e 793 mulheres. "Voltámos com o sentido de missão cumprida e de que demos o nosso melhor e ajudamos muita gente", diz-nos Jorge Jesus, o chefe de equipa da PM em Lesbos.
A bordo da lancha
O JN esteve na ilha e durante duas noites acompanhou as operações da PM na lancha Arade. À primeira vista, a embarcação parece pequena - não chega a 11 metros - mas já foi capaz de resgatar mais de seis dezenas de pessoas de uma só vez. A bordo estão sempre três agentes da PM portuguesa e um agente da guarda costeira grega que é, ali, a principal autoridade. A lancha está equipada com material de emergência médica, cobertores, garrafas de água, brinquedos ou peluches para as crianças.
Algures lá perto, a poucos quilómetros, dois outros elementos da PM estacionam uma viatura de vigilância costeira no topo de uma falésia. Têm câmaras térmicas de visão noturna e um radar à espera de detetar algum sinal. Estão em permanente contacto via rádio com os colegas da lancha.
Um bote à deriva
Os momentos mais críticos ou mais prováveis para encontrar botes de refugiados acontecem quase sempre entre as 5 e as 7 da manhã. É precisamente às 5 da manhã que a lancha se depara com um bote a abarrotar com 44 refugiados. Os primeiros momentos de interação acontecem assim: os agentes da PM pedem que o motor do bote seja desligado e apelam, várias vezes em inglês, a que as pessoas se mantenham calmas.
Está escuro, é noite cerrada, mas as luzes da lancha e das lanternas dos agentes são suficientes para perceber a apreensão e alguma aflição nos rostos dos refugiados. Uns estão manifestamente amedrontados, sem saber o que lhes irá acontecer. "Os mais assustados pensam que somos turcos e que os vamos mandar de volta para a Turquia", explica-nos depois o agente Gonçalo Antão.
A equipa da PM tem noção do estado de fragilidade daquelas pessoas. E a prioridade é salvar as crianças. "O rapaz, primeiro", diz um agente, ao apontar para um miúdo ao colo do pai. Os resgates seguem sempre esta ordem: primeiro os mais novos, a seguir as mulheres e só depois os homens. Um por um, todos são colocados a bordo da lancha da PM.
Há uma mulher que começa a desfalecer, quase a desmaiar, e os agentes reagem sem demoras, administrando-lhe oxigénio. Num ápice, surge um barco pneumático da ONG Proactiva Open Arms, com nadadores-salvadores fluentes em árabe, e a mulher é rapidamente levada para terra. A lancha da PM segue pouco depois.
Entretanto, no porto de Skala Sikaminias um grupo de voluntários da ONG Lighthouse Relief está a postos para o desembarque dos restantes 43 refugiados. Têm garrafas de água, bolachas, sandes, fruta, cobertores térmicos, roupa e calçado seco.
A lancha da PM chega e, com calma, um de cada vez, todos são sentados em terra firme e assistidos pelos voluntários. Há famílias curdas ou da Eritreia. Sírios, iraquianos e etíopes. Sentem-se emoções fortes no ar. Um congolês ergue os braços. "Obrigado a todos os europeus por nos acolherem aqui no espaço Schengen", diz-nos. Também agradece ao "irmão" que os "trouxe para terra". Irrompe num pranto. "Eu choro de felicidade, estou feliz".
Um seu compatriota declara que os polícias portugueses "foram muito simpáticos, não ameaçaram as pessoas e isso é bom".
Começa a amanhecer. Uns tentam telefonar à família. Outros parecem baralhados, perguntam-nos se estão mesmo na Europa. Muitos ficam calados enquanto processam aquelas horas intensas. Uma criança da Eritreia, não mais de nove anos, brinca com uma manta térmica e estende-se em cima de um monte de coletes de salvação.
Uma hora depois, chega um autocarro e são todos encaminhados para o campo de Moria, onde serão registados. Nos muros desse campo alguém pintou esta frase: "Ninguém foge da própria casa a não ser que esta seja a boca de um tubarão".
"Isto mexe connosco e modifica-nos bastante"
O choro de bebés, e crianças encharcadas ou sobressaltadas - estas foram algumas das imagens mais testemunhadas pelos agentes portugueses nas suas operações ao longo de um ano de missão no Mar Egeu.
"Vivem-se aqui horas muito intensas, momentos profundos", diz-nos Jorge Jesus, chefe de equipa da Polícia Marítima Portuguesa em Lesbos. O responsável pára uns segundos para cogitar. E afirma: "Nós não damos valor a algumas coisas da vida e depois vemos aqui famílias inteiras que tudo o que têm é unicamente a família com quem viajam e um saquito pequeno com meia dúzia de coisas". Nova pausa. Volta a falar: "E certamente que nós, que temos tudo e conseguimos viver em paz, muitas vezes andamos preocupados com coisas que não têm valor nenhum e desprezamos estas coisas simples que são o amor pela família e a felicidade em coisas não materiais".
"Todos os momentos são marcantes, mas os que nos marcam mais são aqueles em que aparecem bebés recém-nascidos", realça, por seu turno, o agente Jorge Bragança. E foi uma situação que ocorreu amiúde: quase 900 crianças e bebés foram resgatados para bordo das lanchas portuguesas.
O chefe da missão sublinha que o bem-estar das crianças foi sempre a primeira preocupação dos seus homens. "Muitas vezes, bastavam pequenos gestos, como aquecer uma criança que vinha quase em hipotermia ou dar-lhe umas gomas que nós comprámos de propósito". Nas lanchas da PM também havia brinquedos e peluches. Esse calor humano era muitas vezes retribuído. "As pessoas abraçavam-nos ou beijavam-nos à saída da embarcação, quando se apanhavam a salvo em terra", conta.
A maior parte dos agentes que estiveram na Grécia também têm filhos. Jorge Jesus relata o momento em que brincou e acalmou uma criança de três anos (foto 5) e no olhar do miúdo viu o olhar do próprio filho. Emociona-se ao contar-nos isto - e não é todos os dias que um polícia chora.
Nos antípodas da imagem de polícia mauzão, os agentes da Polícia Marítima deixaram boa imagem na Grécia e receberam elogios até de voluntários das ONG. A mexicana Isabel Rodriguez, da Lighthouse Relief, por exemplo, chegou a escrever textos arrebatados sobre a atitude da PM. Disse que estes portugueses "recuperam a fé na Humanidade" e são "um exemplo para todas as autoridades".