Professor Emérito da Universidade de Florença, cidade onde nasceu, Massimo Livi Bacci, 82 anos, debruçou-se sobre as crises de mortalidade e de fertilidade, os impactos da colonização europeia da América do Sul e a evolução demográfica no século XX.
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Autor de um estudo pioneiro sobre a fecundidade portuguesa, o antigo senador italiano foi condecorado pelo presidente Cavaco Silva com o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Diz, rindo, que costuma brincar com os netos gabando-se de ter a mesma condecoração que o treinador José Mourinho e o jogador Cristiano Ronaldo.
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Itália tem um novo Governo, europeísta e sem extrema-direita. Uma grande mudança. O que espera da gestão das migrações?
É evidente que se trata de uma mudança radical, porque o protagonista do Governo anterior era o senhor (Matteo) Salvini, que era absolutamente contrário à imigração e não só, ao direito basilar do mar. A ideia de que os portos tinham que estar fechados aos migrantes recolhidos no Mediterrâneo é algo que só se pode conceber em tempos de guerra, uma medida extrema absolutamente inconstitucional e contrária à Convenção de Genebra. A política dele era demonizar as organizações não governamentais (ONG) de forma muito perigosa. Mudará nesse sentido.
E o que vai acontecer à Lei Decreto Segurança que Salvini fez aprovar criminalizando as ONG?
É absolutamente necessário que seja profundamente alterada, ou mesmo anulada. O paradoxo é que o novo Governo é uma coligação entre o Partido Democrático (PD), da esquerda tradicional, e o mesmo Movimento 5 Estrelas (M5S) que era e continua maioritário na câmara dos deputados e aprovou essa lei, com todas estas normas ilegais e inconstitucionais sobre as migrações. Será muito divertido ver se aceitam modificar o que aprovaram há quatro semanas. É algo a ver.
O que esperar da ministra que substitui Salvini no Interior, Luciana Lamorgese?
Não sei. É uma senhora que fez muito bem o seu trabalho enquanto prefeita de grandes cidades, a última foi Milão. A ideia é ter alguém que seja um técnico e não um político no Ministério do Interior e por isso é uma boa escolha. Porque a experiência de Salvini foi terrível. Ele era o chefe da coligação, o chefe de um partido e, ao mesmo tempo, usava a imigração como arma de propaganda. O problema é que a imigração não é só uma questão de ordem pública. O que falta no acordo entre o M5S e o PD é uma ideia comum sobre o futuro da imigração, da imigração legal - porque não há só a irregular, que são pessoas que fogem de conflitos, grande parte dos que atravessam o Mediterrâneo. Portanto, há uma questão de controlo da imigração irregular, no respeito dos tratados internacionais, que Itália assinou, de não rejeição, de acolhimento dos que fogem, mas também uma questão de gestão da imigração regular e disso não se falou. A Itália vai precisar de muita imigração nos próximos 20 ou 30 anos.
Precisamente: a Europa precisa da imigração...
Sim, mas a Itália mais do que a Europa. A França tem as contas demográficas mais ou menos em ordem, os escandinavos, a Inglaterra também. Mas Itália, Alemanha, Espanha - e Portugal também - vão precisar de imigração. É necessário um plano preciso sobre aquilo que se quer fazer. E o novo Governo italiano não se pronunciou sobre isso.
Esta questão remete-nos para a demografia, sua especialidade. O que aconteceu à Europa?
As gerações nascidas nos anos 1960 eram gerações com milhões de nascimentos. Itália tinha um milhão por ano até aos anos 1970. Agora tem 450 mil. A França tem mais 300 mil, apesar de ter mais ou menos a mesma população. Há um défice enorme de nascimentos, coisa que preocupa também Portugal. Não há jovens. Nos próximos 20, 30 anos, a Itália vai ter menos 2,5 milhões de cidadãos entre os 20 e os 40 anos, o grupo etário que é motor de uma sociedade, em que se tem filhos, trabalha-se, inova-se, tem-se uma produtividade muito elevada. A falta de população neste grupo etário produz uma crise económica, um abrandamento do crescimento. Portanto, a Itália vai precisar de muitos imigrantes. Quais, quando, como, com que política, não sabemos.
Se a Itália vive essa escassez, como é que Salvini conseguiu passar tão bem a ideia de que era preciso rejeitar a imigração?
É uma boa pergunta. Foi o que aconteceu também na Hungria, o Governo de Órban demonizou a imigração apesar de o país viver uma crise demográfica terrível. Há uma espécie de esquizofrenia. O próprio Salvini, que não é destituído, sabe muito bem que a Itália precisa de imigração, mas demoniza-a porque as pessoas se preocupam com uma imigração que não é controlada. Exagera as consequências negativas, diz que é preciso fechar portos, expulsar os ilegais... o que é muito difícil, de resto. Chegou dizendo que havia 400 ou 500 mil imigrantes ilegais em Itália e que num mês os reenviaria para os países de origem. Mas o número de repatriamentos foi de alguns milhares. Porque é preciso que os países de origem estejam de acordo, é preciso diplomacia, é preciso dinheiro. Depois, a Liga nasceu no noroeste da Itália, muito industrializado, que vive e prospera com os imigrantes. Os eleitores de Salvini nessa região sabem muito bem que sem imigração o país não funciona. O paradoxo é que, apesar de as províncias do norte serem de um modo geral governadas pela direita e pela Liga, os índices de integração dos imigrantes são muito bons. Porque há trabalho. É esquizofrénico: há que demonizar os irregulares e fazer silêncio sobre a imigração legal. Sempre apostei que, se Salvini continuasse a governar a Itália, haveria mais ou menos o mesmo número de imigrantes legais que com qualquer outro governo.
E depois há o facto de muitos chegarem a Itália mas seguirem para França ou Alemanha...
Esses são os irregulares que, em geral, têm família ou conhecidos em França, no caso dos que vêm do Magrebe ou da África francófona, ou na Alemanha, para os do Médio Oriente. E até 2014/15, a Itália teve uma política algo ambígua: aceitava os ilegais mas não os controlava, porque sabia que iam para França, Suíça... Deixava-se passar. Até que os parceiros europeus disseram: sim, vocês têm uma pressão de imigrantes irregulares mas estão a fazer um jogo desonesto, porque deixam-nos partir. Ora a lei europeia implica que se registem os migrantes nos países de chegada, que devem fazer todos os procedimentos de asilo. É o Tratado de Dublin.
Que é genericamente rejeitado hoje em dia. Deve ser reformado?
Absolutamente. Quase toda a Europa concorda. A imigração é um problema do continente europeu, não de um dado país. Porque hoje vêm para Itália, mas há 20 anos iam para as Canárias (Espanha), depois foi a Grécia e os países de leste e amanhã poderia ser a Polónia se houvesse guerra entre os russos e a Ucrânia.
Reformar o tratado como?
Ter uma repartição não necessariamente aritmética dos migrantes irregulares. Por exemplo, um país que recuse participar tem que contribuir do ponto de vista financeiro. Tem que haver uma espécie de diplomacia interna.
Voltando à crise demográfica, de quantos migrantes precisa a Europa para reencontrar o equilíbrio?
Precisaria de dois milhões de imigrantes por ano, o que significa três ou quatro milhões de chegadas por ano, porque há os que se vão embora. Não parece uma proporção muito elevada face à população - somos 500 milhões. Não é uma inundação.
Portanto, o milhão e meio que chegou em 2015 não foi uma verdadeira crise?
Não. É gerível. É óbvio que também são precisos investimentos. Os imigrantes trazem muitas vantagens, o balanço é claramente positivo, mas também exigem investimento. Habitação, instrução, educação, língua, mulheres, é preciso fazer muito por eles. Do lado do Estado, com o financiamento da escola pública, etc., mas também localmente, porque o imigrante vive numa freguesia. Depois é preciso uma política de inclusão na comunidade.
A subida da extrema-direita um pouco por toda a Europa não pode travar esse movimento?
Não é boa política ser muito prudente porque senão a extrema-direita ganha votos.
E não teme que o novo Governo italiano seja prudente, precisamente por isso?
Pode ser um problema, sim, porque o M5S aprovou a política do senhor Salvini. Não muito satisfeito, mas assinou atas e leis e participou numa política de direita. Ver como será capaz de mudar será muito interessante.
Foi membro do PD...
Ainda sou. Ainda não queimei o cartão (risos).
O que pensa desta nova coligação?
Eu era a favor de ir a eleições. Teriam provavelmente dado vitória à direita. Mas teria preferido isso para dar uma hipótese à oposição de organizar-se com um programa bem elaborado, eliminar lutas internas, etc., em vez de ir para o Governo com aqueles a que nos opusemos durante ano e meio, um Governo que corre o risco de durar alguns meses, um ano, ano e meio, e, temo, sem sucesso. Porque o preço a pagar pelos partidos de esquerda será muito elevado.