Algumas instituições já davam o seu endereço para ajudar quem vive na rua a ter cartão de cidadão. Governo quer regularizar prática e incluir câmaras e juntas.
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A Assembleia da República discute na terça-feira uma alteração à lei para que os sem-abrigo possam usar moradas de juntas de freguesia, câmaras municipais, serviços locais da Segurança Social ou associações e entidades da sociedade civil sem fins lucrativos para fazerem o cartão de cidadão. Algumas instituições já disponibilizavam o seu endereço para que esta dificuldade fosse ultrapassada. O Governo quer agora legitimar essa prática e incluir autarquias.
Há quatro anos que a Comunidade Vida e Paz faculta a morada do Espaço Aberto ao Diálogo, uma das suas valências, a dezenas de sem-abrigo para que consigam ter cartão de cidadão. "É sempre uma situação controversa mas, pensando nos prós e nos contras, é mais importante que tenham cartão de cidadão principalmente para acederem a direitos fundamentais", defende Alfredo Martins, da Comunidade Vida e Paz. Quem não tem casa muitas vezes perde ou vê o documento ser-lhe roubado na rua, mas há também quem nunca tenha tido oportunidade de fazer o cartão de cidadão.
Chovem cartas
Estas pessoas veem-se depois impedidas de receber apoios como o rendimento social de inserção ou pensão de invalidez, de procurar emprego ou aceder a cuidados de saúde. "Percebem que têm esses direitos, mas não os podem exercitar por não estarem completamente legalizadas, é discriminatório".
A instituição alerta, porém, que há consequências desta boa vontade e que um dos principais problemas é a acumulação de correspondência, pois continuam a receber cartas de pessoas a quem perderam o rasto "há muitos anos" ou que já têm casa e esquecem-se de atualizar a morada.
"Ficamos com uma responsabilidade institucional porque não conseguimos chegar ao destinatário. Após atribuirmos moradas, chovem logo notificações do tribunal por processos que estão pendentes, que têm a ver com tutelas ou pensões de alimentos dos filhos, crimes ou dívidas antigas", exemplifica o responsável do Centro de Intervenção de primeira linha da Comunidade Vida e Paz.
A instituição tem realizado, nos últimos anos, iniciativas para a emissão ou renovação do documento, que têm tido uma boa adesão, mas, reconhece Alfredo Martins, "depois é complicado continuar a acompanhar estas pessoas". "Nestes eventos ligam-se a nós, mas depois desligam-se, mudam de sítio na cidade e não sabemos reencontrá-las", explica. Este é um dos motivos por que elogia a proposta do Governo, também reclamada por outras associações que facultam a morada há vários anos.
À lupa
PAN sugere apartado e testemunho
O PAN apresentou um projeto de lei no qual, além das autarquias, associações e serviços da Segurança Social, os sem-abrigo podem utilizar um apartado postal, um número de telemóvel ou um endereço eletrónico como morada. O partido propõe ainda que as pessoas nesta situação possam obter um atestado comprovativo da sua qualidade de "sem morada" através do testemunho do técnico ou assistente social da área onde pernoita. "O facto de até aqui não ter sido dada esta possibilidade obstaculiza a que as pessoas em situação de sem-abrigo consigam ter acesso aos apoios sociais. Com esta proposta, mais rapidamente conseguiremos promover a sua integração", considera a deputada do PAN Inês Sousa Real.
Proposta do Governo
A proposta do Governo para alterar as regras de emissão do cartão de cidadão prevê que as moradas alternativas sejam autorizadas pela entidade em causa, numa regulamentação que terá de ser feita, mais tarde, através de uma portaria dos membros do Governo.
Portaria posterior
Missão seria atribuída aos responsáveis pelas áreas da integração e migrações, finanças, administração interna, justiça, modernização administrativa, administração local e segurança social. A Associação Nacional de Municípios defendeu num parecer que esta proposta fique logo prevista na lei e não numa posterior portaria.