Todos os dias, o secretário de Estado do Planeamento, José Mendes, escreve sobre a viagem de Bragança a Sagres de bicicleta. Etapa Chaves-Peso da Régua.
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"Nós é que pomos tudo lá!". Pedalei uns quilómetros com estas palavras na cabeça desde que, em Vila Real, sessenta quilómetros
depois de ter zarpado de Chaves, alguém me reconheceu e me chamou numa esplanada onde parei para reabastecer. Era um trisneto de Camilo Castelo Branco, de nome José, que decidiu entabular conversa comigo para me explicar que o interior dá mais ao litoral do que este alguma vez perceberá.
Procurei descodificar as palavras do José, que me pareciam sábias. Mas o tempo era pouco. Decidi que resolveria o dilema antes da descida para a Régua, porque a partir daí todos os meus recursos físicos e mentais estariam cativados pela exigência da estrada que, qual serpente, se enrosca nas encostas vinhateiras com uma malícia que me deixa desconfiado.
Para facilitar, afastei logo os sólidos. Fiquei-me pelos líquidos. De Chaves a Vila Real, reinam as águas. Descobertas pelos romanos, as termas com qualidades terapêuticas abundam naquele eixo. Vidago, com o H2O mais alcalino do país, abre caminho para Pedras Salgadas, onde o gás carbónico é natural e revigorante. Pelo meio, também Carvalhelhos reivindica o seu lugar no pódio.
É justo. Eles, os transmontanos, enviam-nos águas de eleição. A questão ganha outra dimensão quando passamos Vila Real. Dá-se uma metamorfose no território, que adota o sobrenome de "terroir". As encostas levantam-se arrogantes, penteiam-se em socalcos e fazem questão de se pintar de verde, em contraste com o solo de cor ocre.
A paisagem do Douro parece uma biblioteca. Em vez de corredores, estantes e livros existem socalcos, vinhas e cachos. Em cada
cacho as histórias contam-se com uvas. Todas iguais e todas diferentes. Tintas, brancas, maiores, mas também pequenas e concentradas. Castas, chamam-lhes. Para mim, são prosa.
Segredam vidas de perseverança, feitas de uma luta em que homem e natureza perceberam que um sem o outro não faziam sentido. Prosa líquida, de eleição, do Douro para o litoral e para o Mundo. Dilema resolvido. O José tinha razão.