Os momentos mais marcantes, os medos, a aprendizagem e, apesar de tudo, as alegrias. Mesmo com reforços, fazem milhares de horas extra. "Não há tempo para suspirar".
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Nos ouvidos de Matilde ecoa a pergunta que lhe fazem todos os dias. "Quando vou embora?". Mas agora, quando olha à volta, na enfermaria transformada para receber doentes covid-19, em vez dos seus "velhinhos", tem adultos na casa dos 40 e 50 anos que entraram no hospital pelo próprio pé e que, em pouco tempo descompensaram, ficaram agarrados ao oxigénio, sem autonomia, perdidos. Os internamentos em idades mais jovens são uma realidade imposta pela covid-19 a que não consegue habituar-se.
Matilde, Marina, Ana, Marcela. Quatro mulheres, profissionais de saúde de dois hospitais, falam dos medos, dos momentos mais marcantes dos últimos meses, do cansaço, da aprendizagem, da esperança e das alegrias que as fazem seguir em frente.
De cada vez que Matilde Marques, 43 anos, auxiliar de ação médica no Hospital de Gaia, empurra uma cama da enfermaria para os cuidados intensivos, regressa com a dúvida: "será que volta?". Muitos não voltam. E alguns são novos e, apesar de lidar com a morte há muitos anos, Matilde não sabe viver com isto. Como não sabe como se apagam da memória as imagens de doentes que, de repente, ficam com falta de ar e parecem "peixinhos fora de água".
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A Marcela Silva, enfermeira do Serviço de Urgência do Hospital de São João, caiu-lhe a ficha no dia em que percebeu que corria demasiados riscos. Estava nas tendas, a rastrear infetados, quando foi chamada para ajudar na principal área covid da urgência. Era março, não sabe o dia. Mal entrou levou um baque. "Percebi que não estávamos seguros, estávamos perdidos, não tínhamos circuitos suficientes para separar os doentes, eram muitos e foi tudo muito rápido", conta, no ritmo acelerado do momento.
Nos dias seguintes, o hospital transformou-se e adaptou-se às necessidades. A cada manhã, havia reuniões para atualização, tantas foram as mudanças. O medo inicial diluiu-se nos dias e nas noites, mas o receio de transportar o vírus para fora do hospital mantém-se.
Circuito de sujos em casa
Marcela ficou infetada em abril, esteve isolada três semanas e conseguiu evitar contagiar o marido e os dois filhos, os únicos familiares com quem contacta há meses. O último teste serológico que fez diz-lhe que já não tem imunidade contra a covid-19, pelo que mantém todos os cuidados. Em casa, replicou o circuito de limpos e sujos que se habituou a seguir à risca no hospital.
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Tal como Marcela, milhares de profissionais de saúde ficaram infetados com covid-19 desde março. Outros tantos passaram semanas em isolamento profilático por terem tido contactos de risco. Para quem ficou a segurar as pontas, a carga de trabalho multiplicou-se.
Comparando novembro deste ano com novembro de 2019, os profissionais do SNS trabalharam mais 247 mil horas em dias de descanso semanal obrigatório e mais 219 mil horas em dias de descanso semanal complementar, dizem os dados do Portal da Transparência do Ministério da Saúde.
Medo e insegurança
O reforço de pessoal foi transversal às várias áreas, mas nem sempre suficiente para tapar todos os buracos. De acordo com dados enviados ao JN pela Administração Central do Sistema de Saúde, em novembro passado havia mais 381 médicos, mais 2816 enfermeiros, mais 2880 assistentes operacionais e mais 691 técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica do que em novembro de 2019.
No piso 6 do Hospital de São João, no Porto, a unidade de cuidados intensivos é um centro de referência ECMO, a supermáquina que permite oxigenar o sangue fora do corpo para que os pulmões possam recuperar. Ali, "trabalha-se sempre muito", mas a covid-19 complicou tudo.
"A sobrecarga multiplicou por três e as horas são todas cheias, de dia e de noite, não há tempo para um suspiro", garante Ana Vaz, médica intensivista, minutos depois de acudir um doente em ECMO. Naquele serviço, onde a experiência e o conhecimento fazem a diferença, o reforço de pessoal trouxe alguma perturbação. A atenção, a minúcia do trabalho nos cuidados intensivos exige muita "confiança entre equipas", explica. Quando chegaram novos elementos e as rotinas se alteraram, a especialista confessa que se sentiu insegura e passou "a demorar mais tempo a fazer as mesmas coisas". Mas agora, quando olha para trás, fica surpreendida com "a evolução de muitas pessoas, eu inclusive" em "pouquíssimo tempo". E é nas equipas que a rodeiam que encontra vontade para continuar, dia após dia. Foi assim nos piores momentos, quando saiu de casa com medo do que lhe poderia acontecer, com medo de falhar, e continua a ser assim agora. "Trabalho com pessoas dedicadas, altruístas e boas e que me motivam sempre. Tudo o resto [nesta doença] é péssimo, não temos vida, não podemos estar com a família...", desabafa. Ana é de Bragança e sente saudades de ir à terra "respirar o ar, abraçar as pessoas", aliviar o stresse.
E porque "a humanidade não consegue viver assim", deposita todas as esperanças na vacina. Será por estes dias uma das primeiras profissionais de saúde a tomá-la, já que o São João foi um dos cinco centros hospitalares onde foram administradas as primeiras doses do fármaco da Pfizer.
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Gestos que ajudam
Marina Silva, 29 anos, enfermeira no Hospital de Gaia, terá de esperar um pouco mais pela vacina. Mas esperar não é uma novidade na sua vida desde que a pandemia chegou. Ia casar a 29 de maio e teve de adiar tudo. "Emocionalmente, foi dos momentos mais difíceis de gerir", assegura.
Tal como Matilde, Marina só entrou verdadeiramente no "mundo covid-19" na segunda vaga da pandemia. Na primeira, os doentes infetados ficaram no novo serviço de Urologia do Hospital de Gaia, que no verão assumiu as funções para que foi criado. Desde setembro, que o internamento covid-19 ocupa o serviço de Medicina 4 e os "velhinhos" de Matilde foram substituídos por adultos em idade ativa, alguns dos quais "nunca tinham estado internados num hospital". Muitos estão acordados, conscientes, apercebem-se do que os rodeia e, com gestos simples, tornam os dias de Marina mais leves. "Preocupam-se com o nosso cansaço por causa dos fatos de proteção individual, percebem a importância do nosso trabalho e estão sempre a agradecer o que fazemos por eles", explica. Pequenas alegrias que fazem Marina, Matilde, Ana e Marcela sair de casa, todos os dias, para fazerem a diferença.
29 523 médicos estavam em funções no SNS em novembro, dos quais 9405 eram internos. No total, face ao período homólogo de 2019, há mais 381 médicos.
45279 enfermeiros no SNS em novembro, mais 2816 do que no mesmo mês do ano passado. Os assistentes operacionais são agora 29 722, mais 2880.
Prémio para 25 mil
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Cerca de 25 mil profissionais, que trabalharam com doentes covid ou suspeitos, vão ter um prémio: 50% do salário base e mais dias de férias.
Segunda vaga de fora
O prémio terá um custo de 23 milhões de euros e deixa muitos de fora, como quem está na linha da frente nesta segunda fase da pandemia.