O projeto "Pelos 2" chegou há um ano a seis estabelecimentos prisionais do Norte do país com o objetivo de melhorar a vida dos reclusos e de cães abandonados. O programa de reabilitação mútua conta com mais de 150 participantes e já ajudou a adotar 21 cães.
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Os latidos são abafados pelo ruído constante dos aviões que sobrevoam o Estabelecimento Prisional (EP) de Santa Cruz do Bispo. Duas vezes por semana, o pátio interior da cadeia de Matosinhos é transformado num parque canino, onde as reclusas assumem a tarefa de treinar animais da Plataforma de Acolhimento e Tratamento Animal (PATA) de Vila Nova de Gaia, com o objetivo de lhes devolver a confiança para que possam encontrar um novo lar, uma nova família.
Ajoelhada junto a Geninho, Letícia Gonçalves afaga o focinho do cão e oferece-lhe um biscoito que tira da pequena bolsa amarrada à cintura. Presa há quatro anos, a jovem de 27 anos não aceitou logo participar no projeto "Pelos 2", mas a paixão pelos animais falou mais alto. "Tenho uma ligação muito forte com cães, principalmente com os meus, de quem tenho muitas saudades, e achei que ia ficar um bocadinho nostálgica e que poderia não ser bom".
Durante três meses, a jovem de Fafe treinou Princesa, uma cadela amedrontada que se tornou mais sociável graças ao carinho que recebeu na prisão. Afeiçoou-se. "É um desafio treinar um cão que não é um bebé, não tem carinho, não sabe o que é estar rodeado de gente. Inicialmente, a Princesa desviava o olhar de mim. Não queria brincar, não queria afeto".
Tal como nós merecemos uma segunda oportunidade, eles também.
Quando o programa acabou, ao fim de três meses, a separação não foi fácil. No entanto, a tristeza dissipou-se quando recebeu a notícia de que a cadela tinha sido adotada. "Senti que a missão tinha sido cumprida. Foi para uma casa receber amor e carinho como eu queria". Na opinião de Letícia Gonçalves, o "Pelos 2" aproxima realidades semelhantes. Junta passados difíceis para que o futuro de ambos possa ser mais feliz.
"Eles estão numa situação parecida com a nossa, se calhar ainda mais triste. Estamos isoladas do mundo como eles, e tal como nós merecemos uma segunda oportunidade, eles também".
Menos frustração e mais empatia
Em funcionamento há um ano, o projeto de intervenção assistida por animais já chegou a 150 reclusos de seis estabelecimentos prisionais do Norte do país e permitiu adotar 21 cães. "A ideia é que no final de cada ciclo as pessoas saiam reforçadas, com competências sociais melhores, maior resistência à frustração e mais empatia, e que os cães sejam capazes de entrar numa casa e viverem bem com uma família", explica Sílvia Sousa, psicóloga do "Pelos 2".
Cada ciclo de reabilitação partilhada tem 24 sessões. Nas aulas, humanos e animais fazem exercícios individuais e terapias coletivas, trocam experiências e dicas de como atingir os objetivos. "Em pouco tempo, conseguimos alterar muito o comportamento dos cães. Não é só o sentar ou deitar, essa é a parte fácil. No fundo, é fazer com que acreditem no ser humano outra vez e que este, por sua vez, seja capaz de voltar a acredita em si".
Sentir alegria atrás das grades
Apesar de ser amante de gatos, Andreia Ferreira, 34 anos, abraçou a proposta de treinar Kaya, uma cadela "muito agitada" que a ensinou a ser mais paciente. "Quando a conheci fiquei assustada porque era completamente louca. Não fazia nada do que eu dizia, só queria brincar. Pensei que não ia conseguir".
Com o passar do tempo, a reclusa de Felgueiras foi ganhando a confiança da companheira de quatro patas. Nunca pensou sentir-se feliz na cadeia, onde está há um ano e quatro meses. "Acho que ninguém acredita, quando vem preso, que vai ter momentos de alegria. Num sítio tão complicado de gerir, sobretudo as emoções, em que há dias que a frustração é muita, estes momentos fazem-nos esquecer de tudo. Recebemos um mimo muito grande, mimo esse que nos faz falta".
Projeto inovador e de compromisso
De acordo com Paula Leão, diretora do EP de Santa Cruz do Bispo, a adesão ao "Pelos 2" tem superado as expectativas, com as reclusas a pedirem para repetir a experiência no final das 24 sessões. "Não é só pelo toque com o animal, mas também pelo sentido de responsabilidade e autoestima que este projeto proporciona. As emoções vêm ao de cima".
A diretora da cadeia feminina de Matosinhos considera que a terapia pode ajudar as mulheres a sentirem-se realizadas e prestáveis. "São ferramentas que ajudam a ultrapassar o tempo que cá estão connosco, mas que podem ajudar no futuro, quando saírem daqui".
A opinião é partilhada por Elisabete Dias, diretora do EP de Vale do Sousa. Se na primeira edição os reclusos da prisão de Paços de Ferreira se mostraram renitentes, o "passa a palavra" levou a que agora, na quarta edição do programa, seja necessário filtrar a quantidade de homens que querem treinar os animais. "É um projeto inovador e de compromisso que trabalha competências fundamentais como a de criar empatia, responsabilidade, assumir que é importante estar com, sair da cela. Normalmente são indivíduos que têm dificuldades em criar relação e este projeto é importante nesse sentido".
Cada ciclo de terapia tem 24 sessões (duas vezes por semana) e dura três meses
Com um brilho nos olhos, Carlos Lemos, 29 anos, recorda Bobi, o patudo "incrível" que "o tirou da rotina" e o ajudou a melhorar o autocontrolo. "Quando eu vinha mais irritado, o cão não obedecia às atividades. O facto de aprender a lidar com a minha forma de falar, aprender a ser mais calmo, foi sem dúvida aquilo que mais gostei da formação".
Apesar de ter concluído a formação em agosto do ano passado, o recluso de Felgueiras não se esquece da empatia que criou com o "rafeiro atrevido". "Houve uma altura em que fizemos um teste para ver o quanto ele estava ligado a nós emocionalmente e foi aí que percebi que tínhamos criado uma relação. Quando eu chegava, bastava ele ouvir-me falar um bocadinho que ficava todo maluco", lembra.
À semelhança do que acontece com todos os participantes do projeto, o desapego no final é o mais difícil de lidar. Agarra-se à esperança de que Bobi seja adotado o quanto antes para que possa ser feliz longe do canil.
Veja a reportagem em vídeo aqui:
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