Chama-se Síndrome Inflamatória Multissistémica em Crianças (MIS-C) e é uma doença nova que surge após infeção por SARS-CoV-2. Extremamente rara, mas grave.
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A subida exponencial de novas infeções em janeiro fez aumentar os diagnósticos em Portugal. Três hospitais ouvidos pelo JN contam 83 casos em crianças e adolescentes. Todas recuperaram e seguem agora um rigoroso plano de acompanhamento, em consulta multidisciplinar.
Só o Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, regista 47 casos de MIS-C, numa mediana de idades de sete anos, revela, ao JN, a responsável pela Unidade de Infecciologia. O primeiro caso, daquela unidade e do país, foi registado em abril do ano passado, "quando ainda havia pouca experiência de casos de covid-19 e ainda não se tinha identificado o MIS-C como uma complicação tardia do vírus", explica Maria João Brito.
A explosão de novos casos de covid no início deste ano, com particular incidência em Lisboa e Vale do Tejo, fez com que aquele hospital, entre janeiro e março, tivesse "três vezes mais casos do que no resto do ano inteiro", revela a infecciologista.
Cenário idêntico no Hospital de Santa Maria (Lisboa): de um total de 16 casos, em março, em apenas dez dias, diagnosticaram cinco crianças com MIS-C, precisa a coordenadora dos Cuidados Intensivos Pediátricos. "Tem sido assim em vários países: entre quatro a seis semanas após o pico de infeção, aparecem os casos de MIS-C", frisa Marisa Vieira.
Cicatrizes nos órgãos
No Porto, o Hospital de São João tem diagnosticados 20 casos, que começaram a chegar após o pico da segunda onda, pelo final de dezembro. Mais de metade necessitaram de Cuidados Intensivos, revela a diretora do serviço, Margarida Tavares. No Santa Maria, das 16 crianças, 15 passaram pelos Intensivos. Já no Dona Estefânia, "28,9% necessitaram de Cuidados Intensivos para ventilação ou suporte inotrópico, mas globalmente todos os doentes têm critérios de gravidade", frisa Maria João Brito.
Porque o "MIS-C é uma complicação rara, mas grave da covid-19", na medida em que "atinge múltiplos órgãos e pode deixar cicatrizes nos órgãos quando há envolvimento cardíaco, respiratório ou neurológico", diz. Com especial apetência pelo coração. Na unidade com mais casos diagnosticados, "o envolvimento cardíaco ocorreu em 93,3% dos doentes, com miocardite".
Doença mimetiza outras
É um dos três fenótipos identificados. A que se juntam o "envolvimento respiratório, que pode ser o mais grave; e outro sugestivo de Kawasaki, nas crianças mais pequenas, com melhor prognóstico", afirma Maria João Brito. O cardíaco regista um " atingimento pronunciado nas crianças mais velhas, com mais casos de miocardite", acrescenta Marisa Vieira.
"Não há um marcador específico, mas uma associação de sintomas e dados clínicos", adianta Margarida Tavares. De uma doença que se assemelha a um choque séptico e que mimetiza outras, nomeadamente gastroenterite e apendicite. Entre a sintomatologia, febre alta (39º/40º) que cede mal a antipirético, dor abdominal, vómitos, diarreia.
E apesar de uma complicação grave da covid, a grande maioria dos doentes nem sequer sabia que tinha estado infetada. Dos 15 que estiveram nos Intensivos do Santa Maria, seis tinham positivado antes ao SARS-CoV-2. Na restante maioria dos casos, conhecia-se contexto intrafamiliar de covid.
A maioria das crianças recupera o estado funcional prévio. Mas há casos, como no Dona Estefânia, de alterações em exames cardíacos ou respiratórios. "Se estas alterações são transitórias ou permanentes ainda não sabemos", diz Maria João Brito. Sendo uma doença nova, há ainda muito por perceber. Nomeadamente a sua predisposição genética.
Sem saber que tinha tido covid, foi parar à ECMO
É o caso mais grave de MIS-C. Aconteceu no Santa Maria, na véspera de Natal. Um adolescente de 17 anos, com "febre alta, falta de forças, dor abdominal, diarreia", recorda a médica Marisa Vieira. Teve MIS-C com envolvimento cardíaco. "Tinha uma descompensação cardíaca gravíssima e os medicamentos para ajudar o coração não estavam a ser suficientes e teve que ir para ECMO [máquina de suporte vital extracorporal que permite a substituição temporária das funções respiratória e circulatória]. Foram sete dias. Na vida de um jovem que nem sabia que tinha estado infetado - havia contexto covid na família. E está bem. "Retomou o estado funcional prévio".
Síndrome Inflamatória Multissistémica em Crianças
O que é?
A Síndrome Inflamatória Multissistémica (MIS-C, na sigla inglesa) é uma nova doença que surge após infeção por SARS-CoV-2. "Sabe-se que é um quadro pós-infeccioso, que resulta de um mecanismo imunológico e não do efeito direto do vírus - por isso surge só três a quatro semanas após a infeção aguda", explica a coordenadora dos Cuidados Intensivos Pediátricos do Santa Maria. É uma patologia extremamente rara e grave. "Ainda não temos cálculos reais de prevalência, mas estima-se que surjam um a dois casos em cada 200 mil crianças", diz Marisa Vieira.
Como se manifesta?
No Hospital Dona Estefânia - a unidade com mais casos (47) - todos os doentes "tinham febre e em 95,5% dos casos há mais de três dias, com febre alta, 39º ºa 40º ºque cede mal a antipirético", revela a responsável pela Unidade de Infecciologia. Acrescem os sintomas gastrointestinais: "Vómitos, dor abdominal, diarreia podendo ocorrer apendicite flegmonosa [aguda] que se apresenta com um quadro de abdómen agudo", prossegue Maria João Brito. Uma doença que mimetiza outras. Naquela unidade registaram-se casos de "doentes que realizaram apendicectomia porque tinham, efetivamente, apendicite, mas que mantiveram febre elevada com parâmetros de inflamação aumentados". Segundo a infecciologista, "aceitam-se diferentes fenótipos para MIS-C". Um primeiro, "com envolvimento cardíaco de 100% e gastrointestinal em mais de 90%"; um segundo, com envolvimento respiratório, que pode ser o mais grave; e um último sugestivo de doença de Kawasaki, nas crianças mais pequenas". Referindo, por último, que "o SARS-CoV-2 é um vírus neurotrópico e, embora seja ainda mais raro que o próprio MIS-C", o hospital teve "crianças com envolvimento neurológico (15,6%), com meningite, convulsões ou alterações oftalmológicas".
Qual o prognóstico e a recuperação?
O prognóstico é favorável. Em Portugal, todas sobreviveram e a maioria voltou ao estado funcional prévio. Na Dona Estefânia, há crianças com alterações em exames cardíacos ou respiratórios. Todas seguem um rigoroso plano de recuperação e monitorização. Que inclui Medicina Física e Reabilitação, Nutrição, Psicologia, Cardiologia Pediátrica, Pneumologia. Devido ao envolvimento cardíaco do MIS-C, nos primeiros seis meses não podem fazer exercício físico. Sequelas a longo prazo? "Ainda é cedo e ainda há muito que saber sobre a doença", conclui Maria João Brito.