Há cada vez mais famílias a pedirem ajuda para alimentar os filhos. Com mais de um quinto das crianças em risco de pobreza, pedem-se políticas transversais. Banco Alimentar fala em "sobrevivência".
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Pedem bonecas. Carrinhos. Falam de um Pai Natal em lay-off. Pedem roupa quente. Pedem pela felicidade da mãe - "chora muito, por dificuldades da vida e medo de nos faltar com alguma coisa". Com a inocência dos pedidos a desvanecer-se à medida que crescem. As cartas ao Pai Natal transfiguraram-se com a pandemia. Com pedidos, muitos, para que o velhinho de barbas brancas ponha fim ao bicho.
A pobreza já tinha entrado porta dentro das famílias muito antes do vírus chegar. Com 2,2 milhões de pobres, Portugal tem nas suas crianças o elo mais fraco. Com mais de um quinto em risco de pobreza. Muitas em famílias monoparentais, onde o flagelo atinge mais de um terço. Numa feminização da pobreza.
Ter trabalho também já não é garante, com mais de 10% dos trabalhadores naquela condição. Aos desempregados, cabes-lhe 47,5%. Salvam-se os mais velhos, por via de apoios sociais dirigidos, registando-se a taxa de pobreza mais baixa de sempre - 20%.
pedidos de ajuda triplicam
Às cartas, a Associação de Jovens Ecos Urbanos, em São João Madeira, respondeu com padrinhos. E madrinhas. "O discurso este ano é diferente. Com pedidos mais de necessidade, sobretudo das crianças mais velhas", explica ao JN a sua presidente, Ana Rita.
No centro comunitário, e como em tantas instituições sociais, as famílias apoiadas duplicaram. São 289, com Ana Rita a especificar que desde o início da pandemia tiveram "104 novos processos familiares, num total de 252 pessoas, sendo que destas 63 têm até 18 anos". E uma evidência: "Há novos pobres e o desespero é pedirem comida".
Na CASA Porto - Centro de Apoio ao Sem Abrigo a multiplicação faz-se por três. Com a chegada do SARS-CoV-2, puseram mais uma equipa nas ruas, passaram de três a quatro dias: o número de pedidos de ajuda triplicou. Hoje, revela a responsável Natália Coutinho, servem num dia as refeições que antes distribuíam numa semana.
E de sem abrigo apenas o nome. "Temos famílias inteiras, pai, mãe, filhos, que nos procuram. Tinham a vida estruturada. Basta entrar um no desemprego. São pessoas que têm casa e vão buscar refeições. Não sabem que volta hão de dar".
E à dor de muitos, junta-se a solidariedade de tantos outros. "Temos um grupo de funcionários públicos, que não teve redução de salário, e que todos os meses nos faz um donativo". Apoio esse que tem permitido manter a "CASA Amiga", distribuição de cabazes por famílias carenciadas.
Ao Banco Alimentar - a apoiar, hoje, mais 60 mil pessoas, num total que ascende às 440 mil - chegam "famílias mais novas, que perderam o emprego". Avisando Isabel Jonet "que enquanto não tiverem emprego, não recuperam". Fala numa "situação muito dura, de falta de perspetiva: não se trata da Ceia de Natal, mas sim de sobrevivência".
Políticas transversais
Especialista em pobreza infantil, Amélia Bastos explica que a faixa etária dos 0-18 anos "é o grupo onde surge, de há uns anos, maior incidência e maior intensidade de pobreza". Com a pandemia a agravar a condição dos já vulneráveis e a potenciar uma "eclosão de novas situações", urgem políticas públicas, "mais sistémicas", que "possam cobrir estas desigualdades".
Com foco no ensino, "com acesso a meios digitais", mas também na saúde, na habitação. Transversalidade essa defendida na Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, entregue no final da passada semana ao Governo. Questionada pelo JN, a tutela nada disse.