Câmaras podem recuperar prédios mas limitam-se a obras coercivas para entaipar
Lei permite que as câmaras recuperem, compulsivamente, edifícios vazios para arrendar, mas o mecanismo não é usado.
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A lei já permite que os municípios façam obras coercivas em edifícios devolutos e proponham o subarrendamento aos proprietários privados, mas o mecanismo não tem sido usado. São poucas as câmaras que intervêm em imóveis particulares e, quando o fazem, é para garantir que o prédio não cai ou para entaipá-lo, evitando que seja ocupado. E não para reabilitá-lo e colocá-lo no mercado de arrendamento.
A Câmara do Porto é, entre as autarquias que deram resposta ao JN, aquela que mais vezes realizou obras coercivas nos últimos quatro anos. Contam-se 98 intervenções (14 em 2019, 25 em 2020, 25 em 2021 e 34 em 2022) e todas visaram a "mitigação de risco para salvaguarda da segurança de pessoas, bens e património", após a sinalização da Proteção Civil. Nos casos em que o dono do imóvel não quer ou não dispõe de meios financeiros para executar as correções (ou não foi identificado "em tempo útil"), a autarquia avança e apresenta a fatura ao particular.
Lisboa, Setúbal e Lagos dão conta de empreitadas pontuais em igual período e sempre pela mesma razão. "A maioria das obras coercivas teve a ver com o emparedamento de vão e demolições", explica o Município de Lisboa, contabilizando um total de 18 intervenções compulsivas em quatro anos: seis em 2019, uma em 2020, 10 em 2021 e uma em 2022. Já Setúbal gastou menos de 100 mil euros para "eliminar" os perigos para a via pública de quatro imóveis desde 2019 e, até ao momento, só foi "parcialmente" ressarcido da despesa.
249 casas em lisboa
Sintra, Matosinhos, Famalicão, São João da Madeira, Baião e Bragança não recorreram ao mecanismo neste período, ainda que a capital do distrito transmontano já tenha feito, anteriormente, "obras de encerramento de vão" com tijolos e de contenção de fachadas. "Tratava-se de edifícios antigos e em mau estado de conservação, ocupados por toxicodependentes, e que constituíam perigo de incêndio", relata.
Desde 2019 que o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJEU) dá às autarquias o poder de proceder ao arrendamento forçado de um imóvel privado onde tenha realizado obras coercivas. E, desde novembro de 2021, que o decreto-lei que regulamentou a Lei de Bases da Habitação abriu a porta a que as câmaras proponham aos particulares o subarrendamento de imóveis vazios no mercado do arrendamento acessível. Também nenhum dos municípios, ouvidos pelo JN, aplicou estas medidas. O pacote "Mais Habitação", lançado pelo Governo, tenta ressuscitá-las, com novas regras para o arrendamento coercivo e uma linha de financiamento de 150 milhões para ajudar as câmaras a pagar as obras coercivas em prédios vazios. Mas até a identificação de devolutos tem-se revelado um desafio difícil para a maioria das câmaras (ler texto ao lado).
Ainda assim, há municípios que têm criado programas para a disponibilização de casas particulares a preços mais baixos, em regime de subarrendamento, dentro dos seus territórios, embora a adesão dos proprietários privados esteja aquém do ambicionado. Apesar dos constrangimentos, Lisboa disponibilizou, entre 2000 e 2022, 249 casas ao abrigo do programa Renda Segura. Em Matosinhos, com a resposta municipal de subarrendamento, "Matosinhos: Casa Acessível", lançada no primeiro ano da pandemia, "apenas foram concretizados nove contratos". A Câmara de São João da Madeira publicou, a 19 de maio do ano passado, um regulamento para subarrendamento de fogos privados e, até ao momento, subarrendou três casas a famílias carenciadas.
Posição
Inquilinos pedem fiscalização no arrendamento
A Associação de Inquilinos Lisbonenses defende que o mercado de arrendamento, à semelhança de outras atividades económicas, deve ser regulado e fiscalizado. Os inquilinos pedem, ainda, que a taxa de esforço no arrendamento seja "compaginável com a qualidade de vida", a revogação da lei do arrendamento de 2012 e que as cooperativas de inquilinato possam reabilitar património público devoluto.
"Há um anacronismo tremendo relativamente ao custo da habitação. Como é que se compreende que as rendas sejam, em regra, superiores às prestações por aquisição de habitação? Um está a comprar património e a criar uma poupança, o outro é um gasto", referiu António Machado, ontem no Parlamento, sublinhando que "os problemas de habitação exigem soluções mais avançadas". Relativamente ao Programa Nacional de Habitação, a associação considera que é "extemporâneo e vem tardio".