Supremo Tribunal Administrativo uniformiza jurisprudência, após casos com decisões contraditórias. Juízes dizem que há conflito entre interesses empresariais e o interesse público.
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Um acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA) passa a definir ser ilegal as câmaras municipais contratarem empresas cujo sócio-gerente seja um presidente de Junta de Freguesia desse Município. A decisão, recente, surge na sequência de dois acórdãos, um de 2003 e um de 2019, que tiveram interpretações diferentes face à possibilidade de uma Câmara contratar a empresa de um presidente de Junta.
Agora, as dúvidas desfazem-se. Segundo o STA, sempre que um presidente de Junta é contratado pela Câmara do mesmo concelho fica numa "situação de conflito" entre os seus interesses empresariais e o interesse público do Município de cuja Assembleia Municipal é membro. Ou seja, o STA entende que "este conflito não tem a ver, diretamente, com a sua situação de presidente de Junta de Freguesia, mas sim com o facto de, por inerência, ser membro da Assembleia Municipal", que é o órgão deliberativo da Câmara.
Assim, o facto de o presidente de Junta integrar simultaneamente um órgão do Município (que contrata) e a gerência da sociedade contratada faz com que "não lhe possa ser atribuído o estatuto de desinteressado", declara o STA. Ao não ser desinteressado, "o labéu de desconfiança na sua imparcialidade, na sua isenção, relativamente à celebração do contrato de empreitada, será o bastante para que se verifique o impedimento em causa", conclui o mesmo acórdão.
A decisão foi motivada por um contrato relativo à Câmara de Lousada. No caso concreto, o Município, de maioria PS, abriu um concurso público para a requalificação da EB 2,3 de Caíde de Rei. O concurso foi ganho pela proposta mais baixa, apresentada pela empresa Pedro Moreira e C.ª, Lda., cujo sócio-gerente é Carlos Moreira, presidente da Junta de Meinedo (PSD), no mesmo concelho.
Só que a empresa que ficou em segundo lugar impugnou a decisão junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel. Em primeira instância perdeu, pois foi dada razão à Câmara. O Tribunal Central Administrativo do Norte manteve a decisão, mas um novo recurso viria a mudar tudo.
O STA considerou que existe impedimento e, em acórdão final de uniformização de jurisprudência, acabou de vez com as interpretações opostas, esclarecendo ser ilegal a contratação de empresas de presidentes de Junta por parte de câmaras municipais.
violação do estatuto
Contactado pelo JN, Pedro Machado, presidente da Câmara de Lousada, diz que a decisão é "uma aberração, completamente injusta", pois consubstancia "uma limitação dos direitos inqualificável". Segundo o autarca, esta decisão incide sobre um processo "que foi completamente transparente", de um concurso público, no qual venceu "a empresa que apresentou a melhor proposta". O concurso acabou anulado e a obra ainda não se fez.
Em termos legais, a celebração do contrato viola o artigo 4 do Estatuto dos Eleitos Locais, onde consta que um dos deveres dos eleitos é o de "não celebrar com a autarquia qualquer contrato, salvo de adesão". Em consequência, se o presidente de Junta ou a empresa de que é sócio-gerente for contratada, o autarca fica inelegível para o exercício das funções na Junta e o Ministério Público pode pedir a perda do mandato. Quanto ao contrato, é anulado.
MUNICÍPIOS ADMITEM REVER PROCEDIMENTOS
A decisão do Supremo Tribunal Administrativo, agora conhecida, está a fazer com que algumas câmaras estejam a rever os procedimentos de contratação pública. A questão foi levantada na última reunião de Câmara de Guimarães pelo vereador Hugo Ribeiro (PSD): "É uma preocupação que o presidente deve verificar, porque isto pode implicar problemas para a Autarquia e deve ser verificado no sentido de salvaguardar a idoneidade da nossa Câmara".
Na resposta, o presidente da Câmara, Domingos Bragança (PS), assumiu que vai mandar analisar a questão: "Vou requerer à divisão jurídica da Câmara que analise esta questão e, na próxima reunião, se já tiver essa análise, darei informação". Por sua vez, a Câmara de Lousada não vai alterar os procedimentos na fase de contratação, mas antes, na fase de admissão de propostas. "Vamos ter que passar a acolher esta jurisprudência e deixar de fora as empresas que pertençam a presidentes de junta, mesmo que sejam estas a apresentar a melhor proposta", lamenta Pedro Machado ao JN.