Carmona Rodrigues: "É surreal que o PDM de Lisboa preveja habitação em caves"
Ex-presidente da Câmara lisboeta e ex-ministro é especialista nas áreas de hidráulica.
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Foi com António Carmona Rodrigues que começou a ser preparado o Plano Geral de Drenagem de Lisboa, que tanta discussão causou em dias de inundações na capital lisboeta. O ex-autarca e ex-ministro admite que a construção dos túneis exige avultados recursos financeiros e que muitos autarcas não se preocupam com obras invisíveis e que não enchem o olho em tempo de eleições. Crítico da posição de Luís Montenegro sobre a regionalização, deixa, ainda, um conselho a Carlos Moedas: propor já a revisão do Plano Diretor Municipal (PDM) de Lisboa.
Deu início ao Plano Geral de Drenagem de Lisboa em 2004, quando substituiu Pedro Santana Lopes. Como se explica que, seis presidentes de câmara depois, só agora a construção dos túneis vá arrancar?
Acho que o plano nunca foi abandonado. Suponho é que houve um período em que se lhe prestou menos atenção e em consequência de umas pequenas inundações que houve por volta de 2011 foi retomado, por assim dizer.
Houve menos atenção por chover tão pouco na capital?
Era um plano que previa muita coisa que exigia capacidade financeira. E na altura, acredito, não havia a folga financeira que, depois, passou a haver. E isso terá causado algum esfriamento do plano, porque há sempre muitas coisas a fazer na cidade. Mas, depois, acabou por ser retomado e teve mais pressão no mandato de Fernando Medina. Lançaram-se dois concursos que ficaram desertos, um porque ficou vazio e outro por reclamações. Há uma tendência, muitas vezes, para desvalorizar aquilo que vem dos governos anteriores e na gestão autárquica acontece também.
E não é uma obra visível.
Sim. Não há muitos autarcas que prestem atenção àquilo que não se vê. Debaixo do chão, há muitas veias que dão vida à cidade. As tubagens da água, as redes de águas residuais e pluviais, as redes de comunicação, de eletricidade e de gás, tudo isso que alimenta a vida da cidade e não se vê. Mas é preciso muito cuidado e muita atenção a essas redes. O que se vê, claro, principalmente em vésperas de eleições, é um jardim, um edifício, um novo viaduto, essas coisas enchem mais o olho. E na normalidade das situações, quando não há acidentes, ninguém liga muito ao que não é visível. O que constatei quando entrei para a Câmara de Lisboa é que, nesta matéria, a rede de águas residuais e pluviais estava muito abandonada - funcionava, mas havia pouco conhecimento da própria rede em termos das caraterísticas, idade, materiais e capacidade de escoamento. E havia uma ausência total de instrumentação no subsolo.
O coordenador do plano de drenagem assegurou que os túneis vão resolver 70% dos problemas. Haverá sempre efeitos incontroláveis?
O plano não vai substituir todo o plano existente, vai apenas substituir uma parte. As pessoas, às vezes, não têm noção da quantidade de coletores de águas residuais que existe na cidade de Lisboa. Há cerca de 1300 quilómetros de coletores, assim como há 600 quilómetros de tubagens de abastecimento de água. O que é normal para uma cidade desta dimensão. E, portanto, o plano, desde o princípio, previa a substituição de uma boa parte da rede, porque os coletores estavam velhos, danificados e subdimensionados e era preciso substituir. É preciso fazer bacias de retenção - entretanto foram feitas duas, com resultados muito positivos já durante esta chuvada.
Essas obras implicam caos nas cidades, coisa de que os autarcas também não gostam.
É, mas, quando é bem explicado à população o que se está a fazer, é aceite, porque se está a fazer um investimento para todos. É necessária uma campanha de sensibilização e o envolvimento das próprias juntas de freguesia, de toda a comunidade, da proteção civil, dos serviços da câmara para falar com a população. Porque, realmente, se as pessoas veem uma obra começar e não sabem o que é, gera-se uma reação má.
Falemos de outros túneis, os rodoviários. Houve inundações e disse que são obras mal feitas. Esses erros têm a ver com a antiguidade dos túneis do Campo Grande ou Entrecampos, em comparação com mais recentes, como o do Marquês, que não se inundaram?
As obras não são todas iguais. Há sítios mais delicados do que outros. Já dei vários exemplos de infraestruturas que funcionam bem: a pista do Aeroporto de Lisboa, por exemplo. Não me lembro de um avião não ter aterrado por a pista estar alagada. O cuidado, a qualidade do sistema que se implementa numa infraestrutura destas tem de ser muito bom, não pode ter pontos frágeis. No caso do túnel do Marquês, fez-se uma grande bacia de receção de água, na parte de baixo e tem bombas para evacuar a água. Mas tem também uma outra coisa importante: durante estas tempestades, há, muitas vezes, falhas na rede elétrica, por isso, colocámos um gerador elétrico de emergência, para no caso de não haver eletricidade na rede entrar logo em funcionamento.
Sendo engenheiro de formação, admite que, quando vemos caves inundadas, estamos perante deficiências de construção?
Eu costumo dizer que é erro de construção ou de conceção ou de manutenção. Ou todos juntos.
E, nesse caso, falha igualmente a fiscalização da obra.
Muitas vezes, falha a fiscalização, mas falha aquilo a que o próprio construtor atribui menos importância. No conjunto de um edifício, como um hospital, por exemplo, isto pode metaforizar-se com a mesa de Natal. Temos uma mesa de Natal muito bonita, mas não temos dinheiro para comprar os palitos, como se fosse isso a fazer a diferença no orçamento. Mas faz, às vezes, a diferença no funcionamento. Em muitos casos, não há uma sensibilidade de que vale a pena gastar mais uns tostões, como se dizia antes, e pensar "isto tem de ser de qualidade". Não só de qualidade da parte mais plástica e estética ou da qualidade da edificação.
Temos ouvido, perante as inundações, críticas ao défice de planeamento. Há, de facto, esse défice?
Há. Há vários anos, era normal haver, não só em várias câmaras, mas em muitos ministérios, os chamados departamentos de planeamento. Hoje em dia, é raro encontrá-los. Mesmo nos partidos. Os partidos, sobretudo na Oposição, tinham os gabinetes de planeamento. Hoje em dia, em geral no país, constatamos que há muito menos.
E por que é que isso aconteceu?
Há várias razões. Não quero pôr em causa o nosso sistema de mandatos de quatro anos, mas o que tem acontecido muito é que há uma rutura, quando se termina um ciclo de um governo ou de uma autarquia. Não há uma continuidade, mesmo quando são boas ideias. Não há planeamento, porque é muito condução à vista, e quatro anos para uma câmara ou governo, só por si, não é muito.
Falhamos, também, no planeamento de emergência e nas respostas da Proteção Civil?
Este plano de drenagem tinha seis fases e uma delas, muito importante, é a fase da preparação. A preparação não só para a gestão da emergência, mas a preparação prévia de toda a população. Aliás, em Lisboa, temos há muitos anos um plano de contingência para situações de sismos, mas não basta estar no papel e estar aprovado. Depois, tem de ser gerido, tem de ser acompanhado, tem de haver sensibilizações nas escolas, simulacros. Tem de haver uma rotina de treino, chamemos-lhe assim. Não existe essa cultura. As pessoas ficam satisfeitas que haja um plano, mas um plano não é um papel. Um plano é uma medida para uma ação.
Acha normal que Lisboa não tenha um plano especial de emergência para inundações?
Estava previsto. Foi uma das fases deste plano que lançámos em 2004. Espero que, agora, com a construção destas infraestruturas principais, o plano também esteja pronto.
Tem-se falado muito da impermeabilização dos solos e da construção em leito de cheia. Houve muitos erros na forma como se permitiram estas construções?
Iniciámos o PDM de Lisboa, que depois não foi concluído connosco, passou para as equipas seguintes de gestão da Câmara e foi aprovado há seis ou sete anos. Com alguma surpresa, o atual PDM prevê a possibilidade de fazer habitação em caves.
É um retrocesso?
Claramente que é um retrocesso. É uma coisa surreal. Carlos Moedas devia propor já a revisão do PDM para, pelo menos nesta matéria, mudar algo. Há coisas que foram feitas não se percebe bem como, como o hospital em Alcântara. Mesmo no PDM anterior, estava na chamada zona inundável.
É desconhecimento ou alguma negligência por parte dos decisores?
Há uma postura a nível individual e coletiva que é não ser escrupuloso no cumprimento dos princípios de gestão urbanística e autárquica. Há vários instrumentos que foram feitos sobre a construção e a localização de equipamentos, mas, depois, abrem-se umas exceções. As regras do PDM devem ser muito mais claras. O PDM é um conjunto de cartas, de condicionantes e regulamentos. E os regulamentos têm, muitas vezes, grande margem de variação, de parâmetros. Este caso é assim, mas pode ser assado. Há muitos "ses".
Como avalia a resposta do presidente da Câmara de Lisboa à crise? Considera que estar na rua tem um mero efeito simbólico ou é importante para melhor formular a decisão política?
A Câmara de Lisboa tem um conjunto grande de profissionais e, nestas situações, há uma cadeia de comando para pôr na rua. Tive boas reações, por exemplo, de juntas de freguesia, muitas delas estiveram a ajudar. É fundamental que o presidente da Câmara esteja sempre a par e que contribua com decisões que têm de ser tomadas. A sua presença física aqui ou ali é sempre um sinal de conforto, mas também de proximidade e respeito. É simbólico, mas também importante porque, a certa altura, pode haver decisões que cabe a ele tomar.
Como antigo ministro das Obras Públicas esteve atento ao processo de decisão do futuro aeroporto. Acredita num consenso político?
Mais do que um consenso político, acho que tem de ser um consenso com a população portuguesa. Alguém dizia no outro dia, com alguma graça, que quando se falava das PPP, não eram três P, mas quatro: parcerias público-privadas e com a população. Deveria haver um processo que preparasse o Governo, a Assembleia da República e todos os órgãos políticos nos projeto de interesse nacional.
Qual a opção que defende?
A solução que eu chamo de "Portela+1", que evolua para "1+Portela". A primeira premissa é não abandonar a Portela, mas fazer um phasing out, à medida que o complemento da Portela pode crescer, e esse complemento é em Alverca. Nenhuma cidade que tenha um aeroporto citadino o abandona. Portanto, fazer um phasing out, menos aviões em Lisboa, menos ruído, só de médio curso, em horários mais reduzidos, mas não abandonar a Portela. E fazer crescer um perto, que seria Alverca, que tem ótimos acessos ferroviários e rodoviários, e pode, também, ter de metro. Portanto, tem grandes vantagens do ponto de vista económico, ambiental, de acessibilidades e do ponto de vista da competitividade que queremos para a Área Metropolitana de Lisboa, na sua dinâmica económica. E até no seu prazo de execução.
Estando na Assembleia Municipal de Chaves, tem acompanhado a descentralização de competências para os municípios. Que avaliação faz deste processo?
Houve uma vontade do Governo de transferir para as autarquias uma série de competências, na área da saúde e da educação especialmente. Mas, claro, as câmaras, de um dia para o outro, não podem ficar com estas competências sem meios humanos e financeiros. Isto tem levantado bastantes preocupações e até rejeições por parte de algumas câmaras. E aqui não estou a dividir câmaras por cores, tem havido bastantes cores contra essa vontade. Pode haver vantagens, em alguns casos, em serem as câmaras a estarem mais envolvidas. Temos de ver é se isso corresponde a um serviço que se pretende que seja melhor e não pior do que é hoje. E, para isso, tem de haver os tais meios e recursos. Não se trata de uma regionalização em si, é uma descentralização de competências.
A propósito da regionalização, Luís Montenegro colocou um travão ao referendo em 2024. Está de acordo com esta posição do líder do PSD?
Não estou de acordo. Eu fiz parte, há quatro anos, de uma comissão parlamentar independente que foi nomeada por iniciativa da Assembleia da República sobre esta matéria. E fizemos um trabalho que foi profundo e tão detalhado como nunca sobre a regionalização. Foi entregue, mas está na gaveta. Desde aí, mais ninguém falou. É pena, nem só os planos de drenagem ficam na gaveta, há outros planos que também mereceriam um debate sério e de cabeça fria. Há locais na Europa e no Mundo que podem ajudar a comparar soluções. Temos aqui um problema que é o despovoamento fora das grandes áreas metropolitanas. Um dos principais problemas de fundo do país é a falta de coesão territorial. Mas também não estamos a comportar-nos bem em termos de coesão política no espaço europeu, quando estamos a descer cada vez mais no ranking do rendimento e de outros indicadores. Há qualquer coisa que não está a funcionar bem ao nível de coesão nacional, económica e social.
Ouça a entrevista completa este domingo ao meio-dia na TSF