Há mais de 100 processos na “gaveta” por cada quatro condenações desde 2015. Segundo uma análise realizada pelo Instituto Mais Liberdade, que inclui os crimes conexos, o máximo de despachos de arquivamento foi atingido no ano passado.
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Foram arquivados na última década quase três mil processos de corrupção e de crimes conexos, como peculato, prevaricação, abuso de poder, participação económica em negócio e outros relacionados com o exercício de funções públicas. E houve apenas 103 condenações e 19 absolvições desde 2015 até 2024, ano em que se atingiu um novo máximo, com 405 despachos de arquivamento.
Por cada quatro condenações, há mais de 100 processos arquivados, revela um estudo do Instituto Mais Liberdade disponibilizado ao JN, que já inclui os dados de 2024 agora divulgados.
Na última década, o Conselho de Prevenção da Corrupção e o Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC), que substituiu a primeira entidade, receberam a comunicação do arquivamento de 2832 processos, relativos a eventuais crimes de corrupção e crimes conexos, refere o estudo. As 103 condenações concretizadas representam pouco mais de 3% das comunicações relativas a condenações, absolvições e arquivamentos. E as 19 absolvições pesam menos de 1%.
Administração local domina
No ano passado, houve 504 comunicações judiciais: 405 despachos de arquivamento, 81 de acusação, 16 acórdãos condenatórios e dois absolutórios. A corrupção corresponde a 34% e as restantes são de crimes conexos. Mais de metade (52%) das comunicações estão associadas à administração pública local, 23% à administração central, 12% a outras entidades sob tutela pública e 2% à administração regional autónoma. As entidades do setor privado respeitam a 11% das comunicações de crimes de corrupção e conexos, destaca o estudo, acrescentando que o MENAC chama a atenção para as denúncias anónimas que não se associam a qualquer tipo de crime e só visam criar suspeita.
O pico foi atingido em 2024, com os 405 processos arquivados. O segundo maior número da década foi em 2020, com 396. O total disparou face a 2023, quando foram 146.
Mesmo se retirarmos da contabilidade os crimes conexos, os dados mostram que foram arquivados no ano passado 156 processos relativos a crimes de corrupção, o mesmo número que tinha sido comunicado em 2019. Nos restantes anos, foi sempre inferior e, em 2023, tinha sido de 45 apenas. O total da última década, no que respeita apenas a crimes de corrupção, é de 1180, seguindo-se o peculato, com 574 despachos de arquivamento.
Na sua análise, o instituto destaca que “um dos principais problemas da justiça portuguesa é a morosidade na resolução de alguns processos, que o MENAC associa à complexidade dos mesmos”. E nota que, em 2024, houve o despacho de arquivamento de um processo (encerramento de inquérito) que corria há 12 anos. Um despacho de acusação demorou 10 anos a ser emitido.
Melhorar investigação
André Pinção Lucas, diretor executivo do Instituto Mais Liberdade, afirmou ao JN que, "quando se responde a este problema apenas com discursos sobre o aumento de penas, falha-se o essencial. O verdadeiro problema está a montante: é muito difícil detetar casos de corrupção e ainda mais difícil provar esses crimes e conseguir condenações. E isso não se resolve com leis mais duras, mas com melhores meios de investigação, maior eficiência processual e mais transparência".
"Sim, é verdade que muitos dos processos arquivados talvez não envolvessem qualquer crime. E é por isso que uma justiça que funcione é crucial: não só para condenar culpados, mas também para proteger inocentes, evitando julgamentos na praça pública. Hoje, a justiça não está a cumprir bem nem um papel, nem o outro — e isso alimenta uma perceção perigosa: a de que, à falta de provas, todos são corruptos. Essa ideia é profundamente injusta. E perigosa numa democracia", acrescentou ao JN.
"Sentimento espelhado nos números"
"O fenómeno da corrupção é complexo e difícil de medir com rigor. Os próprios dados disponíveis o demonstram. Talvez por isso, um dos poucos indicadores acompanhados internacionalmente seja o índice de perceção da corrupção da Transparency International — que, como o nome indica, mede perceções, não factos", destacou André Pinção Lucas, a propósito da análise sobre os processos arquivados.
"Estas perceções não são irrelevantes. Pelo contrário: ajudam-nos a identificar sinais de alerta. A falta de transparência no Estado e nos processos de decisão políticos alimenta a desconfiança. E a baixa taxa de condenações por corrupção reforça a ideia de que reina a impunidade — mesmo quando muitos casos são arquivados por falta de matéria", referiu em seguida.
Além disso, nota que "o sentimento está espelhado nos números: 91% dos portugueses acredita que há corrupção nas instituições públicas, segundo o Eurobarómetro de 2023. É a segunda taxa mais alta da União Europeia, apenas atrás da Grécia".