Reguladora monitoriza desde janeiro reclamações dos utentes relacionadas com constrangimentos nos telefones. Doentes procuram alternativa na farmácia, no privado e nas urgências.
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"Perdidos", "abandonados", sem saber onde recorrer. A principal porta de entrada do Serviço Nacional de Saúde (SNS) mantém-se praticamente fechada para milhares de utentes. Por causa da pandemia, os centros de saúde continuam a exigir o agendamento de consultas, pedidos de receitas e outros atos por telefone e email, mas há centenas de queixas de falta de resposta. À Entidade Reguladora da Saúde chegaram 1237 reclamações, desde o início do ano até 18 de setembro, só sobre os constrangimentos no atendimento telefónico e na confirmação prévia dos agendamentos.
As queixas referem-se aos centros de saúde sobre a alçada das cinco administrações regionais de saúde, esclarece ainda a ERS em resposta ao JN. O que significa que são transversais a todo o país. O problema que há meses afeta os cuidados primários, e que já foi reconhecido pela tutela, está longe de estar resolvido. As prometidas duas mil centrais telefónicas, os 30 mil telefones fixos e outros 30 mil telemóveis para melhorar o atendimento à distância tardam a chegar e os utentes desesperam.
"É uma enorme preocupação, isto tem sido um abandonar dos utentes, as pessoas estão perdidas, nem conseguem renovar as receitas", refere Fernando Queiroga, presidente da Comissão Distrital da Proteção Civil do Distrito de Vila Real e autarca de Boticas.
Receitas na urgência
Sem acesso à equipa de saúde familiar, há doentes que acabam no privado, a pagar por serviços que noutros momentos seriam de fácil resolução no SNS. Outros procuram as farmácias "para medir a tensão ou mudar pensos porque no centro de saúde ninguém atende" e também para pedir medicamentos sem receita. Em Leça da Palmeira, várias farmácias admitiram ao JN que nunca receberam tão poucas prescrições do respetivo centro de saúde. E a perceção é de que estão a aumentar as de hospitais privados.
Outra consequência da falta de resposta a montante é a afluência às urgências nos hospitais públicos. O JN sabe que à Urgência do Hospital de S. João, cuja direção já denunciou o problema em agosto, continuam a chegar utentes que não conseguem resolver os problemas nos cuidados primários. Há até quem vá pedir a renovação de receitas àquele serviço altamente diferenciado.
resposta não satisfaz
O presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar admite uma "grande preocupação com a situação que estamos a viver" e dá algumas dicas para aliviar a pressão dos cuidados primários [ler ao lado].
Em Matosinhos, o presidente da Unidade Local de Saúde reconhece os "problemas graves de agendamento" nos centros de saúde e promete algumas melhorias para outubro. Por exemplo, a entrada em funcionamento de uma central de atendimento e devolução de chamadas e a criação de um espaço específico para atendimento covid-19 fora dos centros de saúde, na Avenida Afonso Henriques (junto ao CEIIA).
António Taveira Gomes, presidente da ULS Matosinhos, garante ao JN que a maioria dos doentes que chegam à urgência do Hospital Pedro Hispano (86%) tiveram algum tipo de interação com o centro de saúde. Mas, admite, "muitos podem não ter obtido uma resposta satisfatória".
Telefonemas sem fim e horas nas filas que acabam em frustração
Utentes desesperam com dificuldades para serem atendidos nos cuidados primários. Centros de saúde de portas fechadas fazem crescer indignação.
Telefonam 10, 20, 30 vezes por dia. Ninguém atende. Mandam emails para renovar receitas ou marcar consulta, mas as respostas tardam. À porta dos centros de saúde, somam-se os avisos: "Atendimento só com marcação. Ligue para o número...". Na esperança de uma resposta mais célere, os utentes fazem fila no exterior, na rua, nas escadas, ao sol ou debaixo de cobertos improvisados. Usam máscaras, mas o distanciamento nem sempre dá para cumprir. Muitos acabam por voltar para casa, frustrados, com o número de telefone e o email da unidade de saúde ou do médico. E voltam à estaca zero. As queixas repetem-se por todo o lado. Porto, Matosinhos, Gaia, Santa Maria da Feira, Vila Real, Lisboa. Salvo exceções, os centros de saúde estão a funcionar mal.
Matosinhos - Diabética sem consulta há meses
Às nove horas, Júlia está à porta do Centro de Saúde de Matosinhos. Já telefonou dezenas de vezes, mas continua sem conseguir marcar consulta para a mãe, diabética, sem seguimento desde janeiro. Tinha análises marcadas para abril, que foram canceladas devido à pandemia, "e não voltou a ser chamada". A entrada na unidade está proibida, é preciso esperar que o segurança chame um a um. Quase uma hora mais tarde, Júlia abandona as instalações com um sentimento de frustração.
"Deram-me um papel com os contactos de telefone e email para expor a situação e depois esperar pelo contacto do médico. Se não atendem os telefones e não respondem aos emails, para que é que isto serve?", questiona. Estão mais de 15 pessoas à porta e todos corroboram. "Nunca atendem os telefones", repetem. A indignação de Júlia é ainda maior porque no mesmo edifício funcionam mais duas unidades de saúde familiares e "não há tantas limitações". A resposta é a duas velocidades. "Há discrepâncias de funcionamento", admite António Taveira Gomes, presidente da Unidade Local de Saúde de Matosinhos.
Porto - Aos 83 anos, na fila, a correr riscos
Só pela idade, Serafim Teixeira já devia estar isento de tal provação. Aos 83 anos, anda há uma semana a correr para o Centro de Saúde do Covelo a tentar renovar a receita dos medicamentos para o colesterol e a hipertensão. E de todas as vezes enfrenta as mesmas filas. Aguarda de pé no exterior da unidade - as duas cadeiras estão ocupadas - protegido do sol por um toldo improvisado. Tem uma máscara a tapar-lhe o nariz e a boca, mas o distanciamento recomendado está longe de ser cumprido. Quando chega ao fim da fila e volta para trás: "Tem de aguardar, já estão três pessoas lá dentro", explica-se, por trás da viseira, a funcionária que vai entreabrindo a porta.
O centro de saúde tem uma área específica para receber doentes covid-19 e, desse lado, o descontentamento também é geral. É a segunda manhã que Diana Batista tenta fazer o teste, encaminhada pelo SNS24. "Ontem, vim às 11 horas e já não fui atendida, disseram que já não havia vagas. Hoje [quinta-feira] cheguei às 8.30 horas e espero bem conseguir", diz, encostada ao portão. Na fila que cresce à medida que as horas passam, há duas grávidas, um idoso de canadianas e duas cadeiras ocupadas. A porta abre-se a cada cinco minutos e todos se aproximam na expectativa de ouvirem os seus nomes.
Já passa das 10.30 horas e o sol cada vez mais quente está a tornar difícil a espera de Ricardo Soares. Sente-se febril, tem um problema de mobilidade num pé e já veio recambiado do centro de saúde de São Roque da Lameira para fazer o teste. "Se já sabiam que isto ia acontecer [segunda vaga], como não prepararam nada? Faz algum sentido estarmos aqui amontoados no meio da rua?", reclama.
Santa Maria da Feira - "Faz lembrar as Finanças há anos"
Raul Colaço não só é utente da USF de Fiães, em Santa Maria da Feira, como mora a poucos metros da unidade de saúde. Todos os dias, o espetáculo é o mesmo: "dezenas de pessoas aguardam nas escadas, na rua" para poderem aceder ao centro de saúde. "Os telefones não funcionam, dá sempre sinal de ocupado" e "não abrem a porta, sendo que o centro de saúde tem espaço suficiente". Há 15 dias, Raul experimentou ir buscar um "P1" para o pai fazer um exame, mas desistiu e acabou no privado. A falta de resposta reaviva memórias negativas: "Este centro de saúde faz lembrar os serviços de Finanças antigamente, com aquela postura de que estão ali para nos fazerem um favor".
Vila REAL - Está difícil até para obter receitas
Recentemente, Fernando Queiroga perguntou à responsável do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) do Alto Tâmega: "Mas então quem tem a função de atender os telefones?". "Ninguém". A resposta foi esclarecedora para o presidente da Comissão Distrital da Proteção Civil de Vila Real que ouve há meses queixas de que não se consegue contactar os centros de saúde. As dificuldades de acesso aos cuidados primários no distrito são um assunto recorrente nas reuniões que tem tido com as câmaras municipais, ACES e outros intervenientes na resposta à pandemia. "É muito difícil conseguir uma consulta, uma receita, mesmo para os doentes crónicos", assegura, explicando que não são raros os casos de utentes que acabam na farmácia a pedir ajuda.