Governo confirma subida de 40 euros do salário mínimo nacional e diz que implementará as medidas que puder. PCP e BE não querem eleições. "Nada obriga" a esse cenário, diz Jerónimo de Sousa.
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A Esquerda entende que "nada obriga" a que o chumbo do Orçamento do Estado (OE) leve à marcação de eleições antecipadas, como quer o presidente da República. O líder do PCP lembrou mesmo que o documento "não está destinado a ser rejeitado" - em caso de reprovação, a lei prevê a apresentação de novo OE num prazo de 90 dias -, mas acusou António Costa de preferir tentar a maioria absoluta. Mesmo após o chumbo, o Governo assegura que irá subir o salário mínimo em 40 euros, para 705 euros. Os constitucionalistas ouvidos pelo JN garantem que pode fazê-lo.
O secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, Tiago Antunes, disse que o salário mínimo poderá aumentar, uma vez que a atualização não depende do OE. "Essa é uma medida com que podemos avançar. E, estando em plenitude de funções, vamos fazer aquilo que estiver ao nosso alcance fazer", vincou, na RTP.
O governante assegurou que o Executivo se "compromete" a implementar todas as medidas que colocou "em cima da mesa" durante as negociações do OE. "O que pudermos fazer já, faremos", referiu.
Ainda assim, Tiago Antunes não esclareceu se o aumento extraordinário das pensões poderá ser posto em prática em janeiro, justificando com as "limitações" colocadas pela gestão em duodécimos. Já matérias como a Agenda para o Trabalho Digno, o desdobramento dos escalões do IRS ou o aumento do mínimo de existência ficarão, para já, congeladas, uma vez que dependem do Parlamento.
Também a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, fez saber que o Governo "tomará todas as medidas que estiverem ao seu alcance". Quanto à eventual dissolução do Parlamento - decisão que está nas mãos do presidente da República -, o Governo aguarda "serenamente".
À Esquerda, existem mais reservas quanto à possibilidade de eleições antecipadas. O líder do PCP foi claro: "Não desejamos eleições nem elas são inevitáveis". Num comício em Évora, Jerónimo de Sousa reiterou: "Nada obriga a que da rejeição do OE resulte a necessidade de dissolução da Assembleia da República e de convocação de eleições", disse, acusando Marcelo de querer criar "instabilidade".
Marcelo com mais poder
Jerónimo entende que o país deveria entrar em 2022 a ser gerido em duodécimos. Em caso de negociações de um novo OE, disse que o documento não estaria "destinado a ser rejeitado" desde que tivesse "as respostas de que o país precisa". Mas, lembrando que Costa pediu na quarta-feira, no Parlamento, uma "maioria estável e duradoura", atirou: "Afinal, o que o PS quer é uma maioria absoluta".
Também Pedro Filipe Soares, do BE, considerou que as eleições "não são uma inevitabilidade", deixando reparos à forma "voluntarista" como Marcelo colocou esse cenário. E reclamando tempo para concluir processos no Parlamento, como a Lei de Bases do Clima.
Ao JN, a constitucionalista Maria d'Oliveira Martins diz que nada impede que o Governo aumente o salário mínimo, já que o faz por decreto-lei. Já Paulo Otero vincou que o Executivo está "em plenas funções" até à dissolução, podendo "adotar todas as decisões dentro dos seus poderes".
Oliveira Martins admite que, "teoricamente", o Governo poderá ser tentado a adotar medidas populares, que o possam beneficiar eleitoralmente. No entanto, com a dissolução do Parlamento, o presidente "vê reforçados os seus poderes de controlo político sobre o Governo". Paulo Otero destaca os "acrescidos poderes de fiscalização" que esse cenário dará a Marcelo.
UE pondera pedir explicações ao Governo
O "chumbo"" do Orçamento do Estado para 2022 exigirá "algumas consultas" da Comissão Europeia com as autoridades portuguesas, para determinar ao certo como proceder com a avaliação do plano orçamental, disse o vice-presidente Valdis Dombrovskis. O vice-presidente executivo admitiu que esta situação "levanta questões" que a Comissão vai tentar esclarecer com o Governo português. "Teremos agora de avaliar a situação com as autoridades portuguesas relativamente ao esboço de plano orçamental para 2022 e decidir como proceder ao certo, no sentido em que precisamos de compreender com as autoridades portuguesas quais são as perspetivas, quão cedo poderá chegar o próximo orçamento", declarou.
Perguntas
Três constitucionalistas ouvidos pelo JN fazem a leitura do momento político e do raio de ação atual, tanto do Governo como do Parlamento e do presidente da República. Referem que Marcelo sai reforçado.
Que poderes tem o Governo atualmente? E o Parlamento?
"Até à publicação do decreto de dissolução, este é um Governo em plenitude de funções", refere Paulo Otero, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa: "poderá adotar todas as decisões dentro dos seus poderes". Maria d'Oliveira Martins, professora na Universidade Católica de Lisboa, refere que, enquanto não houver dissolução, "teoricamente" o Parlamento "pode legislar como entender". No entanto, alerta que, "na prática, pode ser difícil completar todos os processos legislativos que tem por concluir", já que a dissolução fará "caducar" todos os que não tenham terminado. Ontem, o deputado Pedro Filipe Soares, do BE, deu conta disso mesmo, apelando a Marcelo a que deixe concluir processos legislativos "pendentes" como a Lei de Bases do Clima.
Sem OE aprovado para 2022, o Governo tem margem para avançar com medidas como o salário mínimo ou os aumentos da Função Pública?
Maria d'Oliveira Martins lembra que a gestão do país em duodécimos - ou seja, governando mês a mês com o OE do ano anterior e nunca podendo gastar mais do que um doze-avos do bolo total - impõe "limitações" à atuação do Executivo. Além de não poder "desrespeitar" os limites de despesa que daí resultam, o Governo confronta-se ainda com "limitações políticas": "Não obstante encontrar-se em plenas funções, sabe que tem fim à vista. Assim sendo, deve evitar atirar encargos para orçamentos futuros", refere a constitucionalista. Também Paulo Otero recomenda "alguma contenção" a um Governo e a um Parlamento que passem por esta situação, de modo a "não prejudicar a esfera de intervenção política" do Executivo e dos deputados que saírem de eleições.
Uma vez confirmada a dissolução da Assembleia da República pelo presidente, o que acontecerá?
Nesse cenário, "o Governo a curto prazo será de gestão", explica Paulo Otero. O Parlamento dissolvido não poderá voltar a reunir em plenário, limitando a sua atividade, durante esse período, ao funcionamento da Comissão Permanente. Esta é liderada pelo presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, e composta pelos vice-presidentes e por deputados dos vários partidos, de acordo com a representatividade de cada um deles.
O presidente da República fez bem ao anunciar que dissolveria o Parlamento antes do chumbo do OE?
Oliveira Martins responde apenas que Marcelo Rebelo de Sousa tem "legitimidade" para tomar essa decisão caso o queira, mas refere que o chefe de Estado verá "reforçados os seus poderes de controlo político sobre o Governo" caso acione esse mecanismo. Paulo Otero considera que o presidente agiu "preventivamente", pelo que quando votaram contra o OE, os partidos de Esquerda sabiam que estavam, "implicitamente, a aprovar a dissolução". O constitucionalista concorda que Marcelo passará a ter "um papel mais reforçado no controlo político do Governo", até porque, vinca, a dissolução implica "um dever acrescido do primeiro-ministro em informar o presidente das medidas a adotar ou já adotadas". Jorge Miranda, constitucionalista de Coimbra, concorda que esta foi "uma forma de o presidente fazer pressão sobre os partidos" e não acredita que recue.
Marcelo poderá recuar na intenção de convocar eleições?
Paulo Otero diz que "o presidente não tem margem de manobra". "Autovinculou-se politicamente a dissolver o Parlamento. Juridicamente pode voltar atrás mas, politicamente, perdia a face". O constitucionalista recorda que a decisão de dissolver a Assembleia como forma de "pressão" política "não é inédita": foi usada por Jorge Sampaio no tempo do Governo de Santana Lopes. "Inédita é a mão que o presidente deu ao Governo para reforçar a pressão junto dos partidos à Esquerda do PS", conclui.