A preocupação com as alterações climáticas está a levar as urbes a alterar a forma como nos movemos, produzimos energia, gerimos os resíduos e criamos espaços verdes. Matosinhos e Cascais dão o mote, aproveitando as novas tecnologias para orientar os esforços e medir os resultados.
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As cidades portuguesas estão cada vez mais empenhadas na luta pela descarbonização, com estratégias que vão da mobilidade ao edificado, sem esquecer os resíduos e os espaços verdes. Algumas, como Matosinhos, ambicionam até antecipar as metas e integrar a rede de 100 cidades europeias neutras em carbono em 2030. Para isso tem havido uma "forte aposta na utilização do transporte público", conta a presidente da Câmara, Luísa Salgueiro. Nos últimos anos foram criadas novas linhas, reforçados horários e trajetos. Os jovens têm passes gratuitos para que "alterem os seus estilos de vida e hábitos".
O alargamento do metrobus e criação de ciclovias são outras mudanças em curso, para que a população troque a viatura individual movida a combustíveis fósseis por transportes públicos sustentáveis e modos suaves, evitando emissões de gases com efeito de estufa.
A aposta não é por acaso. Em Matosinhos, isolando o impacto da refinaria que encerrou recentemente, "51% das emissões de carbono são derivadas do setor dos transportes", explica Catarina Selada, diretora do city lab do centro de engenharia e desenvolvimento CEiiA.
Aplicação mede emissões
Para ajudar a acelerar a descarbonização, o CEiiA criou uma plataforma, AYR, que consegue quantificar, em tempo real, as emissões de carbono evitadas. Os testes decorrem em Matosinhos. Usando uma aplicação móvel, uma pessoa pode saber quantas emissões foram evitadas quando usou a bicicleta em vez do carro. Em troca, recebe créditos digitais que pode trocar por bens e serviços sustentáveis.
As boas decisões dos 25 mil participantes no teste permitiram, no último ano, evitar "a emissão de 25 toneladas de CO2". A ideia agora é replicar o AYR em mais seis cidades: Porto, Vila Nova de Gaia, Guimarães, Braga, Viana do Castelo e Vila Nova de Famalicão. Segundo Catarina Selada, só na mobilidade destas cidades, seria possível evitar, até 2030, cerca de 2,4 milhões de toneladas de CO2, o que "contribuiria grandemente para uma quase anulação das emissões de mobilidade".
Esta plataforma também regista fluxos e padrões de mobilidade e de sustentabilidade, informação que pode ajudar a tomar decisões e a definir políticas públicas. As cidades, frisa Luísa Salgueiro, têm de ser "reorganizadas", nomeadamente a nível de percursos e proximidade de serviços e as tecnologias têm um papel decisivo nas mudanças.
O CEiiA quer atuar, ainda, a nível do sequestro de carbono, recorrendo a "dados de satélite para medir e monitorizar o potencial" das zonas verdes.
Resíduos vão gerar hidrogénio
Em Cascais, os transportes também assumem um papel decisivo. Quando, há 15 anos, o Município mediu a pegada carbónica, percebeu que emitem 530 quilotoneladas/ano. Entre 45 e 50% são geradas por transportes.
O Município delineou um roteiro para atingir a neutralidade e decidiu focar-se em quatro áreas: transportes, energia do edificado, resíduos e florestas.
Agora os autocarros são gratuitos, as rotas duplicaram e os veículos são mais ecológicos. Com isto, a utilização do transporte público aumentou 25%, mesmo apesar das limitações de mobilidade decorrentes da pandemia.
Uma das grandes novidades é a transformação de lixo em hidrogénio, que irá mover autocarros. Já foi assinado um protocolo entre a Autarquia e as empresas que o vão desenvolver, esperando-se que entre em funcionamento daqui a dois meses. "250 quilos de resíduos permitirão que um autocarro percorra 250 quilómetros", explica a vereadora do ambiente Joana Pinto Balsemão.
Projeto-piloto de recolha de biorresíduos
Ainda nos resíduos, Cascais tem uma plataforma inteligente (que inclui um sistema de sensores nos ecopontos para evitar viagens desnecessários para os recolher) que evita a emissão de 350 toneladas de CO2/ano. E em Carcavelos, 2000 famílias foram desafiadas a entrarem num projeto-piloto de recolha de biorresíduos, que serão usados para produzir energia, em vez de irem para aterro e libertarem metano.
As estratégias não ficam por aqui, até porque, na lista dos principais emissores de carbono, segue-se o edificado. Tanto Cascais como Matosinhos estão a instalar painéis solares nas coberturas dos edifícios e substituíram a iluminação por LED. Em Matosinhos estão a ser intervencionados nove conjuntos habitacionais, num projeto de 16 milhões de euros, para melhorar a eficiência energética.
Do lado do sequestro também há medidas. Cascais plantou 36 mil árvores em quatro anos, que absorvem entre 360 e 1440 toneladas/ano.
Criação de desigualdades
Mas será que as soluções desenhadas podem ter outros efeitos escondidos? No seu trabalho de doutoramento, Luís Pereira Dias, investigador do Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade da Universidade Nova de Lisboa (UNL), antecipa cenários para perceber se as soluções de descarbonização disponíveis e equacionadas pelas cidades para a reconfiguração do seu sistema energético terão efeitos em outros sistemas (por exemplo na água) e se serão justas e equitativas a nível social.
Quando as principais soluções para descarbonizar uma cidade passam pela instalação de sistemas fotovoltaicos nas habitações, tal pressupõe "que a implementação da solução recai sobre a população", exemplifica o investigador. Ao analisar este cenário, percebe-se que "há um risco da sua não concretização e da criação de desigualdades, porque parte da população não terá capacidade financeira" para a instalar os painéis.
Esta antevisão pode levar a entidade a priorizar outras medidas, reequacionar o peso daquela medida ou introduzir alterações, financiando os painéis para os mais pobres, por exemplo, para superar a limitação.