<br/> O futuro das cidades chegou antes do esperado. O pós-covid vai trazer alterações significativas que os próprios processos de mudança ocorridos durante a pandemia vieram antecipar. Cidades mais amigas do ambiente, mais viradas para as pessoas, mais promotoras da inclusão, mais livres de automóveis, mais defensoras da mobilidade suave, mais desenhadas a pensar no bem comum.
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Pode parecer quase utopia, mas especialistas ouvidos pelo JN Urbano garantem que a realidade será mesmo assim, acelerada por desafios que as dinâmicas verificadas desde há um ano, quando o Mundo se viu rendido a uma doença global que obrigou a alterações dos hábitos e rotinas habituais, comprovaram.
"As cidades vão tornar-se mais humanizadas", resume Paula Teles, engenheira especialista em mobilidade e fundadora da MPT - Mobilidade e Planeamento do Território. "A saúde pública será o principal objetivo e aqui entra em campo a atenção especial que terá que ser dada à descarbonização, através da promoção e incentivo à utilização de veículos de mobilidade suave, de forma a deixar para trás o recurso prioritário ao automóvel", considera. Para tal, será necessário que as medidas a adotar caminhem no sentido de alterar políticas e mentalidades durante décadas enraizadas na gestão municipal.
Um dos exemplos de cooperação intermunicipal de sucesso vem de Espanha, mais propriamente da Galiza. Chama-se Ágora e é uma rede de trabalho que une Pontevedra e as cidades vizinhas com o objetivo de promover iniciativas comuns de revalorização do espaço público e a melhoria da qualidade de vida. A grande meta é que todos os municípios envolvidos nesta plataforma consigam através de políticas comuns aumentar "de forma substancial" as áreas reservadas a pessoas, os itinerários pedonais e as ciclovias até junho de 2023.
Além disso, o polo Ágora promove anualmente cursos dirigidos a estudantes do Ensino Superior, espanhóis e estrangeiros, com a participação de especialistas internacionais da área de políticas urbanas, naqueles que são os primeiros cursos universitários públicos do género a nível mundial. O de este ano, que vai arrancar em abril, contará com a participação de Paula Teles. "Foi uma honra ter sido convidada e poder partilhar experiências que venham contribuir para que as novas gerações pensem as cidades de outra forma", refere a especialista.
s cidades pós-covid terão que esbater e aplanar a curva da mobilidade e isso só se tornará possível quando a organização e gestão dessas mesmas cidades se orientarem no sentido da multifuncionalidade
O tema das cidades pós-covid será um dos principais em cima da mesa. E logo com um desafio para vencer: garantir que os espaços públicos sejam seguros sem que isso implique um contínuo distanciamento social. Uma resposta que será dada não só na Galiza, como em todas as latitudes e geografias. A começar quando a pandemia for declarada vencida.
"As cidades pós-covid terão que esbater e aplanar a curva da mobilidade e isso só se tornará possível quando a organização e gestão dessas mesmas cidades se orientarem no sentido da multifuncionalidade", explica Paula Teles. No fundo, a questão principal passará por "tornar as cidades amigáveis", alargando os espaços pedonais, promovendo o verde e "criando redes de transportes públicos mais eficientes". E pensando, também, nos cidadãos vulneráveis, como os idosos ou os deficientes. "Ser-lhes negada a cidade, é ser-lhes negada a liberdade", lembra.
Rui Igreja, presidente da MUBI - Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta, concorda que as novas políticas urbanas devem privilegiar as pessoas e o espaço público. Lembra que durante a pandemia "se registou um aumento significativo do uso da bicicleta em todo o Mundo" e que Portugal não ficou fora desta estatística. "Foram tomadas medidas que, provavelmente, não teriam sido tomadas nos próximos dez anos. Basta lembrar que em Lisboa foram abertos novos 50 quilómetros de ciclovias", atenta Rui Igreja.
Tudo dependerá de dois fatores essenciais: da vontade dos cidadãos em alterarem comportamentos e da vontade política em fazer algo diferente
Tais dados podem indicar alterações da visão geral do que devem ser as cidades? O líder da MUBI acha que sim e que há razões para "pensar em algo melhor no futuro", nomeadamente em novas formas de deslocação através de meios não poluentes. "Tudo dependerá de dois fatores essenciais: da vontade dos cidadãos em alterarem comportamentos e da vontade política em fazer algo diferente", entende. Uma certeza tem Rui Igreja: "A oportunidade para construir um futuro melhor é agora, a covid só veio dizer e provar isso mesmo."
Para Rio Fernandes, professor catedrático do Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o pós-covid irá demonstrar uma verdade incontornável: "As cidades não vão ser exatamente iguais ao que eram antes de pandemia."
O também presidente da Assembleia-Geral da Associação Portuguesa de Geógrafos lembra estudos que apontam para uma quebra de 50% do número de estabelecimentos comerciais em áreas urbanas, sobretudo nas zonas mais centrais, e que apontam para uma perspetiva de políticas de arborização e valorização da natureza.
Lógica de usufruto alargado
"Haverá menos deslocações, o que contribuirá para a redução da poluição automóvel, e uma preocupação mais acentuada com a atividade física e o chamado verde urbano", acredita Rio Fernandes.
O geógrafo prevê ainda que os espaços "ligados ao ócio, à natureza e a um certo distanciamento social" vão vencer dentro das cidades, além de uma "ligação quase natural" entre o património cultural e arquitetónico, numa lógica de usufruto alargado. "Todas estas políticas são possíveis de implementar em Portugal a breve trecho. Mas, para isso, é necessário que não sejam tomadas medidas avulsas e, isso sim, articuladas entre os municípios. Essa é a chave para que surjam projetos conjuntos no futuro", aponta Rio Fernandes.