O relatório de 2021 revela que a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR) recebeu 408 queixas, cerca de 34 por mês, que resultaram na abertura de 73 processos de contraordenação e na deliberação de duas condenações: uma admoestação e uma multa. Dirigentes do Movimento SOS Racismo e da Casa do Brasil de Lisboa dizem que números são apenas a ponta do icebergue e que a legislação é "branda" e "ineficaz".
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No total, em 2021, a comissão aprovou dez decisões: duas condenações, uma decisão de manutenção de uma condenação proferida anteriormente e sete arquivamentos. As duas decisões condenatórias foram aprovadas pela comissão em dezembro de 2021 e são dois casos de "efetiva violação da lei", lê-se no relatório. A deputada que foi admoestada proferiu uma intervenção numa reunião da administração local "suscetível de ofender pessoas com base na sua origem étnica". A multa, no valor de 435,76 euros, foi aplicada por ofensas dirigidas por uma vizinha a outra, relacionadas com a sua nacionalidade brasileira.
O relatório anual foi divulgado na página da CICDR e revela que a nacionalidade brasileira tornou-se o principal motivo das queixas por discriminação. Do total de 408 recebidas pela comissão, 160 foram motivadas por questões de nacionalidade e 109 foram dirigidas contra brasileiros.
A subida dos atos discriminatórios contra imigrantes brasileiros não surpreende Ana Paula Costa, vice-presidente da Casa do Brasil de Lisboa: "Somos a maior comunidade imigrante e isso reflete-se no número de casos". Há quem tenha medo de apresentar queixa e quem não faça porque não vê resultados, explica, apontando esse como um problema.
"A legislação é branda. É certo que têm sido aprovadas medidas contra a discriminação, xenofobia e racismo mas tem de se melhorar. As pessoas têm de se sentir protegidas para denunciar e precisam de ver a resolução da sua denúncia, têm de ver consequências. Apenas uma em cada cinco queixas resultou num processo de contraordenação, isso é muito pouco", sublinha Ana Paula Costa.
A comissão assume, no relatório, que apesar do "aumento consolidado" do número de queixas recebidas, desde 2014, "ser demonstrativo de uma maior consciencialização para a temática da discriminação racial e étnica", o número total de queixas "não representa o universo real". Em 2014, a comissão recebeu 60 queixas; em 2019 foram 436 e em 2020, 655, mas a comissão frisa que esse foi um ano "atípico" por casos mediatizados terem sido denunciados por diversas pessoas inflacionando o número total de queixas.
A vice-presidente da Casa do Brasil de Lisboa confirma que o número não traduz os relatos diários de casos discriminatórios. As situações de assédio a mulheres brasileiras, por exemplo, "são constantes" e devem-se a um "estereótipo da imagem da mulher de Carnaval". Outra situação comum, aponta, é os obstáculos criados no arrendamento. "Recentemente ouvi um relato de uma mulher brasileira que quis agendar uma visita a um apartamento para arrendar a quem foi pedido condições irreais como 12 meses de renda antecipada e fiador. O marido, que é estrangeiro e fala inglês, ligou de seguida e não lhe pediram nada", conta ao JN.
De acordo com o relatório, a maior parte das queixas foram motivadas por situações que aconteceram em estabelecimentos comerciais, na Internet (publicações em sites online ou comentários em redes sociais) ou em contexto laboral. Mas também há queixas por dificuldades no acesso a serviços (transportes, banca, Saúde ou Educação), situações da "vida social privada" ou de vizinhança.
Mais de 100 queixas enviadas para o Ministério Público
A maior parte das queixas (179) foram encaminhadas para outras entidades - 109 foram enviadas para o Ministério Público por "ilícitos criminais" e 37 para a Linha Internet Segura, por divulgação de conteúdos "ilegais, com apologia ao racismo, discurso de ódio ou incitamento à violência, discriminados na Internet sob a forma de publicações ou comentários em redes sociais" (algumas queixas, lê-se no relatório, terão sido reencaminhadas em simultâneo para estas duas entidades). Para a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) foram remetidas 22 queixas e para a Entidade Reguladora da Comunicação Social, 19.
"Os números não nos preocupam porque significam muito pouco", começa por reagir José Falcão. O dirigente do Movimento SOS Racismo, admite que a "comissão faz o que pode" mas a lei é "mais do que branda, é ineficaz" e é preciso aprovar nova legislação, defende. Aliás, mais do que isso, insiste, para se começar a diminuir as situações de discriminação, xenofobia e racismo, os portugueses têm primeiro de assumir que "são um país racista" e que esse "é um problema estrutural e sistémico" e não "pontual".
O número de queixas é "manifestamente insuficiente". "As pessoas têm medo e não acreditam que valha a pena a denúncia. Muitas são desaconselhadas a apresentar queixa pela própria polícia que chega a dizer que têm de pagar pelo reporte", garante.
"É preciso outra lei. Mudar currículos no ensino para se corrigir mentiras do que se passou nos Descobrimentos. É preciso começar a fazer reparações, além dos sefarditas. Há muitas maneiras de o fazer e não é só com dinheiro", reivindica.