A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa recebeu 290 testemunhos validados durante três meses, mas acredita que este número é apenas "a ponta do icebergue".
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"Os números não ficam por aqui", assumiu a socióloga Ana Nunes de Almeida, esta terça-feira, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, referindo que os testemunhos sinalizaram outras vítimas, pelo que o número pode ser "muito superior". A comissão fez, esta terça-feira, um balanço de três meses de trabalho, depois de no primeiro mês de atividade ter recebido mais de 200 testemunhos.
Até ao momento, revelou Álvaro Laborinho Lúcio, foram enviados para o Ministério Público 16 casos suscetíveis de investigação criminal por poderem não ter ainda prescrito os prazos. A esmagadora maioria das situações, explicou o antigo ministro da Justiça, passaram-se há mais de 20 anos, além disso, são testemunhos anónimos e sigilosos.
"Todos os casos são analisados individualmente" até por existir risco de perpetuação contra outras vítimas, referiu o pedopsiquiatra Pedro Strecht, frisando que esse perigo também leva a que alguns casos, independentemente dos prazos, sejam enviados para o Ministério Público.
Abusos cometidos em escolas e colégios
De acordo com os testemunhos, explicou a socióloga Ana Nunes de Almeida, as vítimas nasceram entre 1934 e 2009, ou seja, terão entre 12 e 88 anos e a idade em que aconteceu o primeiro abuso foi entre os dois e os 17 anos. São mais homens, têm todos os níveis de escolaridade, do 1.º ciclo a doutoramentos, e vivem em todas as regiões do país. Foram recebidas denúncias de emigrantes que vivem em países da União Europeia, Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e México. E muitos são ainda jovens, sublinhou Ana Nunes de Almeida, referindo que apesar dos abusos poderem ter acontecido há mais de 20 anos, se a vítima tinha menos de 10 anos, hoje tem 30 anos ou menos.
Os agressores são maioritariamente homens e ligados à igreja, apesar de existirem denúncias contra mulheres e leigos. Há relatos de abusos em seminários, internatos, ordens religiosas, na catequese, nos escuteiros, em colégios católicos e também em escolas públicas por professores de Educação Moral e Religiosa Católica.
Cinco bispos ainda não responderam à comissão
A comissão enviou pedidos de entrevista aos 21 bispos portugueses, cinco terão respondido logo nos dois primeiros dias após o contacto feito pela comissão, outros cinco ainda não deram qualquer resposta mesmo após um segundo pedido. Até ao momento, já foram realizadas 11 entrevistas, uma está marcada para quarta-feira e outras quatro ainda estão por agendar.
Interpelados sobre situações de tentativas de encobrimento, Pedro Strecht assumiu que já foram identificados "indícios de ocultação", nomeadamente entre bispos ainda no ativo.
Os membros da comissão voltaram a assumir dificuldades em chegarem ao "Portugal profundo". Além de "spots" e entrevistas em jornais ou rádios locais, foram enviadas cartas personalizadas a todos os municípios do país e à exceção de câmaras mais "proativas" como Lisboa, Porto e Funchal, o nível de respostas foi "muito baixo", referiu Ana Nunes de Almeida.
Pedro Strecht apelou à divulgação da comissão e dos contactos (da linha de telefone, +351917110000, diariamente entre as 10 e as 20 horas, email, geral@darvozaosilencio.org ou através de carta para o Apartado 012079, EC Picoas 1061-011 Lisboa), nomeadamente nas homilias.
Equipa vai analisar arquivos
Uma equipa coordenada pelo professor da Universidade do Minho, Francisco Azevedo Mendes, já iniciou a investigação aos arquivos diocesanos para fazer uma análise socio-histórica dos abusos. Por haver denúncias em colégios católicos e alguns desses estabelecimentos terem arquivos próprios, explicou Daniel Sampaio, a comissão já contactou os colégios maristas, pertencentes à Opus Dei e Jesuítas para também aceder a esses arquivos.
Numa tentativa de descentralização, vão ser realizadas duas conferências-debate nos polos da Universidade Católica, em Viseu (6 de maio) e Braga (18 maio).
Para 10 de maio, na Gulbenkian, em Lisboa, está agendado o encontro que contará com a participação do presidente da República e do padre Hans Zollner, professor na universidade Gregoriana de Roma e conselheiro do Papa Francisco.
Até ao final do ano, a comissão pretende recolher testemunhos e denúncias de pessoas que tenham sofrido abusos na infância e adolescência, até aos 18 anos. No final dos seus trabalhos, a comissão vai elaborar um relatório, que será entregue à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), que decidirá que ações tomar.