Abraçaram espírito de missão e sabem que na véspera de Natal alguém tem de se sacrificar. Mas confessam que lhes custa passar a noite de consoada sozinhos.
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A tradição manda que a noite da consoada seja passada em família. Todavia, por muito que queiram, nem todos o conseguem. De 24 para 25 de dezembro, o país quase pára, mas há profissões que não podem parar. Aqueles que falharam a ceia de Natal confessam que custa sempre, mas o espírito de missão fala mais alto. Até porque - já diz o lugar-comum - o Natal é quando um homem quiser.
Polícia Municipal
Um Pai Natal que só chega às 9 da manhã
Não é a primeira vez que Filipe Lopes, 42 anos, vai estar de serviço na noite de Natal: "Faz parte da missão". Mas, o agente principal da Polícia Municipal do Porto confessa que este ano custa "um bocadinho mais", porque, entretanto, já tem dois filhos, de cinco e oito anos, e "o Natal com crianças tem aquela magia especial". Filipe vai estar vigilante no Centro de Gestão Integrada (CGI) da Câmara do Porto, a postos para ajudar quem precisa.
Através dos monitores da sala de controlo do CGI, vê-se a cidade quase toda. Por norma, a consoada é tranquila "e é assim que se quer", mas se algo acontece, a partir dali, os vários serviços presentes - Polícia Municipal, Bombeiros, Proteção Civil e PSP - conseguem enviar uma resposta mais focada e adequada.
Filipe termina o turno às 8 horas de dia 25. Por isso, este ano, o Pai Natal só vai chegar a casa, em Fafe, lá pelas 9 horas da manhã. "Custa não estar presente, mas quando vestimos esta camisola praticamente nunca mais a tiramos. Expliquei aos meus filhos e eles ficaram um pouco desanimados, mas é por uma boa causa e espero que estejam orgulhosos do pai".
Enfermeiro
Para os doentes ainda é "mais difícil"
Rui Guedes é enfermeiro há 14 anos e esta é a primeira véspera de Natal que passa no Hospital de São João. "É nas noites que isto se torna um pouco mais complicado; nunca sabemos o que esperar. Agora, com a pandemia da covid-19, ainda mais imprevisível se torna", antecipa.
Por norma, o Natal é passado com a mulher, os pais e os sogros. Este ano é diferente. "É a primeira vez, mais a sério, que vamos estar separados", antecipava Rui. A mulher, igualmente enfermeira, também está de serviço e no S. João. Ele vai estar no serviço das infecciosas. A mulher na medicina de homens. "Fica um em cada ponta do hospital, mas acabamos por nos sentir um bocadinho mais próximos e nenhum está sozinho em casa".
A família compreende, até porque vão ajudar alguém que precisa. "Se nesta noite é difícil para nós deixar a família e vir para o hospital, para quem está cá enquanto doente é ainda mais complicado e mais difícil". Por isso, este Natal só se festeja a 25 de dezembro. "Quando sairmos, vamos um bocadinho a cada casa estar com os nossos pais. Cansados, mas estaremos lá".
Motorista
Passar a noite a levar os outros à consoada
Luís Magalhães esteve quase a pedir para sair do turno da noite da STCP. Habituou-se e, aos 57 anos, já não quer outra coisa. "Dá-me tempo para ficar com a família", explica. Nesta consoada, o tiro saiu pela culatra. Calhou-lhe uma das nove linhas noturnas que vão funcionar de 24 para 25 de dezembro. "Não é que goste, mas aceito porque tenho plena consciência de que é necessário haver carros para as pessoas irem para casa".
Nesta noite, os passageiros não são muitos. "Alguém que teve de trabalhar até mais tarde, uma ou outra pessoa mais solitária que vai dar uma volta e pouco mais. Mas, hoje em dia, há mais coisas abertas. Se calhar, vai ser mais preciso".
Na aldeia de Luís, em Paredes, o Natal é o dia principal do ano. Tinha planeado ir a casa da filha com a mulher e os sogros. A filha compreendeu, mas fica sempre uma pontinha de amargura. "Tenho um netinho, de três anos e meio, e uma netinha a caminho. Fico com pena de não estar com eles, de conviver com a família e participar na entrega das prendas", confessa. Vai lá almoçar no dia seguinte, o que compensa um bocado. "Para o ano, se Deus quiser, lá estarei na consoada".
PSP
Comer o bacalhau da ceia no almoço de 25
Por trás da farda da PSP está uma pessoa - Manuel Couto, 50 anos - com mulher e dois filhos. A pessoa tem família, mas este Natal teve de "substituir a sua família para poder proteger a dos outros". Como está na PSP há 26 anos, a família já está habituada. Ser polícia está-lhe no sangue. "Isto é inato, nasce connosco. Ou se é ou não se é", afirma, com uma garantia aos portugueses: "Poderão sempre contar connosco nos momentos mais difíceis, especialmente nesta fase pandémica que o Mundo atravessa".
"O país não pode parar. Por isso, trabalhar na noite santa é um verdadeiro teste ao dever de partilha e espírito de sacrifício a que todos os polícias estão sujeitos após o juramento de bandeira", considera. Ainda que a noite costume ser calma: "Entre as 20 e as 22.30, a cidade até assusta. Não há um carro. Nem os sem-abrigo se veem".
Este ano, Couto deveria sair à meia-noite e ter a família à sua espera. "Chego à uma e ainda como uma rabanada". No dia 25 entra de serviço às 16 horas. "Vou comer o bacalhau de ceia no almoço de 25", antecipava, deixando uma mensagem de esperança: "Depois da tempestade, virá a bonança".
Testemunho: A trabalhar no farol mas na companhia de duas famílias
Mário Moreira esteve de serviço na consoada e comeu bacalhau com a mulher, a filha e os sogros
Ao longo dos 22 anos que leva como faroleiro da Autoridade Marítima Nacional, Mário Moreira já se habituou a começar a vida de novo. Passou pelos faróis de Santa Maria, em Olhão, de cabo Espichel, em Sesimbra, e pela Direção-Geral dos Faróis, em Paço de Arcos. Desde setembro deste ano, está destacado no Farol de Leça, em Matosinhos.
Todos os faróis nacionais têm casas para os faroleiros e familiares, mas, hoje, são raros os casos em que as famílias ali vivem. O caso de Moreira não é exceção. A mulher e as duas filhas, de 15 e 24 anos, estão em Lisboa. Ele está onde é preciso. Agora está no farol de Leça, a 370 quilómetros de casa. A família já se habituou à distância. Desde que está neste posto, Moreira vai uma vez por mês a casa. Sempre que pode, a família faz o trajeto inverso para passar uns dias no farol.
Neste Natal, Moreira foi escalado para estar de serviço durante toda a noite de consoada, mas não a passaria sozinho. Terá consigo as suas duas famílias: a do farol e a de sangue.
Os quatro faroleiros destacados em Leça funcionam como um só. "A ideia romântica da vida calma do faroleiro é uma ilusão". Apesar de estar tudo automatizado, têm todos muito que fazer. "Somos engenheiros, trolhas, médicos, enfermeiros e doentes. Aqui, somos de tudo e cuidamos de tudo. Somos uma família", afirma.
A sua outra família, a de sangue, vive em Lisboa, mas esta sexta-feira rumou a norte para, como é tradição, passar com ele a véspera e o dia de Natal.
"Por norma, vêm sempre ter comigo nesta altura e passam uns dias no farol", explicava Moreira. Este ano, vinham não só a mulher e a filha mais nova, como os sogros. A ceia centrar-se-ia no bacalhau à minhota, ou não tivesse o faroleiro uma sogra do Norte. Para Moreira, estes são dias e momentos especiais. Por isso, deixou uma garantia: "No farol onde eu estiver, ninguém passa o Natal sozinho. Não deixo!".